...descobrir que há nos espelhos um encanto inexplicável de contornos místicos, de feiticeiro ancestral que nos obriga a comunicar com o nosso eu mais intrínseco e nos leva a explorar todas as nossas falhas interiores através da mera observação de uma imagem.
porque o meu espelho sou eu. um eu estético, um eu estático que apenas tem vida nos contornos limitados do enorme quadrado de espelho e que me mostra tudo o que (nem sempre) quero ver. é um eu que vive e respira e se admira e se repele com a intensidade das paixões narcísicas. porque o espelho não nos reflecte por inteiro, há sempre aquele bocado que falta. aquela totalidade. e se calhar o que me agrada no espelho é precisamente essa vacuidade, essa presença incompleta que me fita, agressiva e fielmente. um eu vazio, ou nem sempre. um eu que se pode transformar com uma mudança de olhar ou de expressão, um toque no cabelo, um risco nos olhos. um eu controlado a cada instante, observado em cada inclinação da cabeça, em cada movimento da mão. um eu suprimido, subjugado ao que não passam de reflexos da realidade. uma imagem e nada mais.
e no entanto, tantas vezes de olhos fixos nesse quadrado de sonhos infinitos, à espera talvez de, por entre os reflexos vazios, conseguir ver um bocadinho que fosse do outro eu, aquele cujos reflexos só aparecem nos olhos dos outros.