segunda-feira, janeiro 31, 2005

o frio

de vez em quando o frio sabe bem. quando deixamos de nos roer por dentro com saudades de um calor que nos venha encher de risos e refrescos, conseguimos reconhecer que há uma beleza pura no frio. uma beleza que inspira, que serena, que ilumina com a luz subversiva com que o frio banha tudo aquilo em que toca, em que se reflecte, em que se projecta.

é uma beleza fria.

retesa os músculos da cara, mareja-me os olhos de lágrimas bem-dispostas e transparentes como o fio de água (fria, como convém) que deixo escorregar da torneira, de manhã, quando me olho ao espelho: é o frio da água, do espelho, do aço das torneiras, do branco dos lavatórios. é um frio estético que me desperta para depois se transformar num frio físico, claro, palpável...aquele que está nos passeios, na meia-luz do anoitecer, pendurado nas árvores dos jardins, metódico, persistente e nostálgico, descansando permanentemente no cabedal dos casacos, no pêlo quentinho das golas, na lã grossa das luvas e dos cachecóis. sabe bem, o frio.

o meu frio.

terça-feira, janeiro 25, 2005

mar

às vezes parece que estou perdida num imenso mar de futilidades, nadando sem conseguir sair do mesmo sítio, à espera de um qualquer barquinho perdido, como eu, que me leve de volta para casa. é que este sol até pode ser brilhante e o céu azul...e a água é sem dúvida das mais límpidas e convidativas que já vi. só que basta aperfeiçoar um bocadinho o olhar, prestar atenção, e vê-se perfeitamente que lá no fundo (que nem é assim muito fundo) este oceano de idílio não passa de um pântano, dos mais lodosos, movediços e repugnantes.

filosofia de almofada

a independência é uma mentira enorme e muito mal disfarçada.

sexta-feira, janeiro 21, 2005

amor à primeira vista?

há coisas que me fazem não acreditar minimamente no amor à primeira vista. paixões à primeira vista, isso sim, há por aí aos milhões. paixões avassaladoras só porque sim, só porque se olhou para alguém com outros olhos, com olhos de quem deseja, de quem quer aproveitar antes que se esgote. porque a paixão esgota. é como o vodka-groselha: é doce, é colorido, cativa-nos ao primeiro copo. mas enjoa. tem um prazo. ao fim de um tempo já não o podemos ver. e ao fim de mais um tempo já nem nos lembramos que existe. claro que é bom, aliás óptimo. mas é efémero, esbate-se. como a paixão. o amor não pode por definição ser efémero. o amor é mais complicado, requer uma habituação, um determinado estado de espírito, uma certa maturidade. o verdadeiro amor nunca começa como se espera que comece. tem sempre uma história qualquer por detrás. um período de adaptação. uma vivência. é complexo, quente, consolador. já passou por muito. o amor é a paixão sem a histeria. conquista-nos à força de muita insistência, de muito convívio. e por muito que uma paixoneta nos possa cativar de vez em quando, não há nada como um bom amor de muitos anos: um single malt com uma pedra de gelo, se faz favor.

quarta-feira, janeiro 19, 2005

eu e o meu pai

"-acho que no fundo sempre tive alma de artista (...) gosto de pôr as pessoas a pensar, de desconcertá-las...
-eu tenho alma de matemática.
(longa pausa silenciosa)
-isso não é desconcertar, isso é anarquia."

domingo, janeiro 16, 2005

da preguiça e outros pormenores

se há coisa de que toda a gente precisa é da preguiça, preguiça boa, daquela que prende uma pessoa ao sofá e não a deixa sair por nada, que a inunda de sossego e boa disposição como se de um sol de junho se tratasse. para os efeitos este sol de dezembro não é exactamente comparável mas adiantemo-nos que eu tenho de começar a perder este hábito de me demorar demasiado em coisas que não interessam. ou então não, até porque as coisas que não interessam são sempre as mais interessantes. avancemos.

os dias de preguiça são sempre produtivos, não duvidem os mais cépticos: a preguiça é amiga da ponderação, da calma, da placidez...eu arrisco até da paz. e nestas alturas em que o mundo está tão confuso, tão nervoso, tão tristonho um bocadinho de paz (e de preguiça) é sempre bem-vindo. é assim como aquela cara sorridente que aparece sem avisar no meio da multidão, como o ananás bem doce no fim do almoço, como a música que se ouve pela primeira vez e de que se gosta logo. é preguiça, é boa e mais não há que se diga.

e depois por meio da preguiça há aquele filme que se vê, mas não se vê. porque não se está a prestar atenção, não se está a devorar o argumento nem a admirar a cinematografia nem a filosofar sobre a ideia que dá origem a esse filme. mas vê-se. e guardam-se imagens na cabeça como se fossem fotografias ou, melhor ainda, momentos que até poderiam ter sido realidade (se não estivessem retratados num ecrã, obviamente). como o ar terrivelmente intelectual-sexy da personagem principal, o cigarro pendendo dos dedos, o decote já demodeé, o corte garçonne, os brincos excessivamente compridos e o bâton vermelho-vivo...mas o que a torna diferente, o que a torna especial, o que faz com que o homem não a consiga tirar da cabeça por mais que tente não são os enfeites, não. é o olhar malandro. o sorriso decidido e alegre. o tom desafiador com que pinta as histórias que conta, as ideias que tem, o que lhe apetece dizer. quase que acredito que ela está mesmo ali, com ele ao lado, a galeria de arte tão incrivelmente familiar...apesar de nunca ter estado em nenhuma parecida. acho que deve ser aquilo a que chamam a "magia do cinema". capaz.

e depois há as palminhas, que coisa deliciosa, as palminhas! ela bate palmas e conquista-nos a todos naquela minúscula janelinha de tempo em que fixa as continhas brilhantes nos nossos sorrisos idiotas (como aliás se espera que sejam).

e depois há aqueles momentos que vão da descontracção absoluta (gosto sempre tanto de ficar no silêncio, sabe tão bem, parece veludo nos ouvidos) às gargalhadas incontroláveis a que não conseguimos fugir. porque aqui toda a gente já sabe que nós as duas em dia-sim somos um terramoto, não paramos quietas, prendemos a razão e todas as suas amigas em gaiolinhas de metal e deixamo-nos levar pela loucura das cores e de tudo quanto for desprovido de qual tipo de lógica e compostura, somos tontas e gostamos.

e depois há tanta coisa.

quinta-feira, janeiro 13, 2005

as boas pessoas...

...são sempre boas pessoas. mesmo quando são más.

as outras não adianta sequer tentarem.

segunda-feira, janeiro 10, 2005

da minha janela

da minha janela vejo o céu.
da minha janela vejo as cores da cidade.
da minha janela perco-me em paletas de brilhos infindáveis que se movimentam em sequências cheias de contrastes mecânicos, opacos que se alternam em batidas contínuas e suaves.

da minha janela agarro o sol. com os olhos fechados.

da minha janela vejo abraços que se complementam e se confundem com os olhares concentrados dos que passam apressados e com o vagar dos que se limitam a devanear, sorvendo cada detalhe da caminhada com a avidez de quem se encontra pela primeira vez.

da minha janela vejo-me a percorrer os caminhos que tenho percorrido desde sempre. vejo as nuvens abertas do tempo que passou, vejo caras e cheiros e sabores e buganvílias cor-de-rosa que já deixaram de abrir há muitos anos.
da minha janela vejo alegrias e tristezas passeando de mãos dadas.

da minha janela vejo outras janelas.

o que será que se vê
daquela janela

?

terça-feira, janeiro 04, 2005

na distância da noite, recomeçar...

desligando botões, desfazendo correntes, desatando nós, fechando portas e portões e gavetinhas.

abrindo todas as janelas.

sentindo a corrente de ar passar junto ao pescoço, colada como um sopro, fresca como o primeiro sol da primavera. deslizando pelos cabelos até às costas, arrastando braços e pernas, imóveis no enleio confortável do ar, frio. inebriante.

sonhando com paisagens distantes, cores nunca antes vistas em nenhuma paleta, odores intensos e reconfortantes. sóis que nunca perdem o brilho, luas que aquecem e estrelas infinitas que se reflectem em sorrisos de amêndoa e laranja amarga.

travos que aquecem a alma.