quinta-feira, dezembro 15, 2005

da liberdade


quero outros saltos e outros vôos e assistir ao despertar de mais luas como a que tenho gravada na retina. tenho saudades de quem nunca tive e continuo à procura do que não vejo. e é no limite das minhas lembranças que me escondo, à espera desse descolar que me liberte.

quinta-feira, dezembro 01, 2005

reflexo

vejo-te num olhar desconhecido e é absurdo. mas vejo-te e sinto-te como sentia,
e sinto num olhar, num acorde,
num desenho. quero ver-te

noutro olhar.

sábado, novembro 12, 2005

pergunto-me:

se sabem mesmo do que falam, se têm a certeza de que vão viver assim ad eternum, se não pensam nem por um microsegundo na necessidade que têm de uma mudança - de uma evolução. há nos discursos cheios de certezas uma insegurança mal mascarada que me deixa sempre desconfiada das verdadeiras intenções do interlocutor: uma ideia tem todo o direito a ser defendida com a maior das convicções, mas deixe-se sempre um espaço aberto, uma margem de manobra que convide a contestações. não se tiranizem as ideias. não se ridicularizem as pobres, presas em palavras vãs e repetitivas, nas bocas de quem nunca se questiona.

sábado, novembro 05, 2005

a esta hora...


...desenterro ruínas de castelos de areia, perdidos há tempo demais, soterrados por montanhas de instantâneos que aparecem e desaparecem com a efemeridade das borboletas e que acabam por não ter importância nenhuma, acumulando-se como colinas de pó num chão por varrer. instantâneos cinzentos de cinzeiros por despejar, que acinzentam tudo o que permanece, todos os coloridos de passados vários, recordações que se vivem, não como fotografias carcomidas de que já ninguém se lembra, mas como propulsoras de futuros diferentes destes que se programam sem saber como é que o sol nasce amanhã. varro os cinzentos com a euforia de quem se insurge, de quem insiste e vê resultados, vê presentes, vê futuros nos passados distantes, nos reflexos de sensações que não são mais do que ensinamentos - e absorvo estas lições, reaprendo-as e procuro sem descansar uma solução para os dias em que deslizo nestas inércias.

sexta-feira, novembro 04, 2005

tempo

penso se tenho tempo para ter tudo o que quero, para ser tudo o que sonho. se tenho tempo sequer para querer, quanto mais para sonhar. quero ter tempo. quero tanto ter tempo, tanto tempo, não peço mais nada. não quero mais nada. o tempo é o meu tudo derradeiro.

quero tempo para ver, para tocar, para descobrir. para acompanhar e para ser o que já sou mas todos os dias mais e melhor e maior e sempre assim, até ao fim. quero tempo, tanto tempo, todo o tempo. quero um tempo infinito, um tempo congelado que demora o tempo que eu quiser.

não sei quanto tempo tenho. nem sabes tu nem nenhum de nós. não sei se ainda vou ter tempo amanhã ou depois ou daqui a dois meses ou cinquenta anos. e se há em mim uma vontade sombria e humana de saber, o que eu mais quero é congelar este tempo por tempo indefinido.

domingo, outubro 30, 2005

o céu está cor-de-rosa

e eu ainda sinto a tua falta, em fatias de pensamento de sabores diversos e nos meus olhos que se cansam de tanto [te] procurar por aí. levo para todo o lado o peso do desequilíbrio, não sei despegar-me do que sinto. não sei fingir: só disfarçar, camuflar, maquilhar cuidadosamente essas incertezas tão tangenciais, tão minhas. tão instaladas, já. e percebo tantas coisas que levaram tanto tempo a perceber, tantos mistérios intricados que sempre assumi como mais-valias de pessoas pequenas e que afinal são tão humanos como tu e eu, tão evidentes como o tempo e as mudanças e tão poderosos como o cor-de-rosa do céu que me fecha os olhos cansados em contemplação do que não se pode ver.

sexta-feira, outubro 28, 2005

é assim

estou especada em frente a um ecrã de um vazio tremendo. [é branco] vejo-o como via o quadro negro da minha escola, as contas de dividir que esperavam que eu as resolvesse - sem saberem, coitadas, que eu esperava que se resolvessem a elas próprias [a magia do giz]. isto era na quarta classe. já não estou na quarta classe, já não sou uma criança por definição, e tenho pena [tanta pena].

sábado, outubro 15, 2005

maria

só bastava um olhar prolongado para saber exactamente como era, como seria, como fora. naquele intervalo de tempo em que deixava o seu olhar discreto perder-se num qualquer detalhe. um sorriso, um gesto, um centímetro de pele. um catalisador de emoções, de experiências químicas e de outras magias sublimes e demasiado ignoradas pelas pessoas em geral, para seu próprio descontentamento. sentia-se feliz, genuína e selvaticamente feliz, sempre que encontrava um outro olhar como o seu. um olhar que lhe dissesse que tinha razão.

quarta-feira, setembro 21, 2005

caminhos

não sei porque escrevo se na verdade não quero escrever. quero tocar na tua boca e calar-te e não quero ouvir nada, nem um sussuro, nem um suspiro, nem o mais ligeiro respirar. quero ser aquela pessoa, quero brilhar de uma vez sem ter que recorrer aos espelhos, às máscaras. aos artíficios - às artes dos meus ofícios. quero ser uma, ter a alma pura e o coração sossegado. quero beber o silêncio em grandes goladas, encontrado finalmente o oásis da minha descrença. não quero escrever. não quero tocar a minha dor, martelada por um piano de cauda, bonito mas desafinado, num esconso das minhas aventuras. desdita. quero sentir o abraço, o cobertor, o espaço seguro e infinito. quero ser redonda, perfeita como uma esfera, sem nenhum ângulo que se prenda inadvertidamente noutro de igual simetria. ou talvez assimetria. quero abrir a boca e fabricar sons como quem compõe uma sinfonia, abrir os olhos e libertar cores e luminosidades perfeitas, soltar as minhas mãos no vazio e delas ver surgir formas e texturas renascentistas, leves e perfumadas de paixões avassaladoras.

quero abrir-me em compassos eternos, etéreos como farrapos de sedas rasgadas e imponentes nos seus reflexos, caminhos sinuosos e quentes e meus.

terça-feira, setembro 13, 2005

não existe mais nada

viu o entardecer quente e luminoso, como os entardeceres em que atava as recordações aos postes da cama, com algemas de raios de sol e olhares de ternura dominadora. este entardecer dizia-lhe segredos, tal como os outros entardeceres que a envolviam em palavras de canela e mel que a suspendiam no sonho, quase inconsciente. e eram segredos inocentes, segredos que não estavam ainda soltos, suspensos. eram segredos que a faziam sorrir um sorriso decrescente, como o sol que desaparecia lentamente no horizonte incendiado de vermelhos. o sorriso arrastava-se com os filamentos rosáceos do entardecer, esses entardeceres em que o mundo congela e não existe mais nada, mais ninguém. e ela deixava que o sorriso se arrastasse, aproveitava-o antes de ele se transformar numa noite fechada, de luzes de prata e reflexos fugidios. uma noite como as que lhe cantavam odes de solidões deixadas às avessas, como as noites em que ela se deixava atar pelas recordações, levada pelos raios da lua e pelos olhares de submissão atenta.

e antes que o último bocadinho de sol se desvanecesse numa fúria púrpura, ela fechou os olhos e pensou que naquele instante não existia mesmo mais nada, mais ninguém.

sexta-feira, setembro 09, 2005

o sono

adormeço com todas as certezas cromáticas que me ornamentam o sono. sou uma, inteira e decidida, rainha e senhora do tudo e do nada, subvertendo as composições de outra maneira idóneas, carregando os sóis de um brilho cegante que não deixa ver para além da fronteira do sustentável. do escuro. acordo suada, sufocada, afogada num medo tangível.

escorrego dos braços quentes do sossego e só dou por isso quando me desfaço no chão.

domingo, setembro 04, 2005

é sempre o mesmo

não gosto de ir. não gosto porque quando vou encho-me da luxúria enganadora dos que vão - e rebolo em dunas de felicidade por fugir à rotina famigerada e soturna (ou assim se pensa, ou assim se diz) - e quando volto

quando volto está tudo na mesma - menos eu.

quinta-feira, julho 28, 2005

da amizade sem constrangimentos de espaço-tempo

(re)vi um filme que me lembrou alguém que já viu esse filme comigo. alguém que viu muitos filmes comigo. alguém que me conheceu tão bem ou melhor do que eu me conheço. alguém que cantou comigo, que me fez (raras) confidências e que me ouviu e compreendeu como ninguém conseguiu, alguém que me perdoou os erros, que me aplaudiu as qualidades, que me apoiou tanto e tantas vezes. alguém que cresceu comigo, que me fez crescer e com quem aprendi coisas que ainda hoje não esqueço. alguém que me deixou com muitas e boas recordações. alguém a quem nunca agradeci.

"love, passion, obsession. the things without which life isn't worth living, you said."

quarta-feira, julho 27, 2005

summer blues


e depois vinha o verão e levava-me ao colo, anestesiando-me com cuidado, trinta-e-três graus, dilatando cada mílimetro da minha pele na sua languidez centígrada. vinha a luz do sol e embebia-me num calor doce e decidido, iluminando-me com certeza, espalhando com a grandeza das coisas superiores os cristais dourados da sua radiação como compete a um grande midas cósmico. vinha a água do mar e embrulhava-me sem eu dar por isso, infiltradas as suas gotas salgadas e redondas no meu corpo subitamente aquático, submerso e deslizante no vazio calmo e solene e neptuniano, perdida e achada nas ondas frias e endemoniadas.

vinha o verão e devorava-me.

sexta-feira, julho 22, 2005

nursery rhyme





















what do you do when you don't know what to do / do you try and do what's right, do you give it up for just one night / do you change out of the blue, do you ignore what you see as true, tell me what do you do / do you wait for clearer skies, for brighter days, for different lies / do you hope for cleansing rain or do you wash but leave the stain / it's hell trying to figure out just what you do, when you don't know what on earth to do.

segunda-feira, julho 04, 2005

...eis a questão:

invejar um tempo em que a imaturidade fazia uma única vocação parecer credível. é difícil fazer uma quantidade - demasiado grande? - de interesses confluir num único objectivo fulcral. daí a indecisão, o arrependimento da escolha, o medo do futuro como unidade temporal. as pressões da sociedade, cada vez mais num desenvolvimento negativo (como regressão), aliadas a sistemas educacionais e empresariais que definham nas suas estruturas, arcaicas e inibidoras per se, acabando por impedir a concretização ideal dos seus propósitos. injustiças em decisões que se tomam cedo demais, talvez, e que não ligam com a inflexibilidade das instituições académicas ou empresariais, presas estas a moldes que não ajudam, que não se adequam às exigências de uma vida real que se quer prática, motivadora: que leve a uma transmutação constante de interesses e capacidades, permitindo a quem não é dotado de uma única vontade forte (oposta a vontades várias em permanente mudança) a reinvenção e o poder de fazer uma gestão realista e contínua da progressão da sua vida profissional, em qualquer campo de actividade. abrir as escolhas, tornar a perspectiva do futuro numa constância justa em que se possa acreditar, por oposição a um filme em nuances de cinzento que já toda a gente começou a ver e do qual ninguém quer verdadeiramente saber o fim.

ontém falava-se de revoluções necessárias, da clausura das mentalidades, de uma história que se vai escrevendo cíclicamente, de um povo ameno com demasiadas pretensões e falta de [re]acção.

o maior entrave de todos ao desenvolvimento da acção é a intangibilidade das capacidades - confianças outrora tão inatas na sua dormência - , esmagadora quando associada ao prisma aterrorizador do longo prazo.

sábado, julho 02, 2005

silêncio e calma


ando à deriva como se o que me sustentasse não fosse mais do que nada. estou sozinha. absolutamente sozinha. não ouço um barulho que não venha de onde eu o possa controlar. não há condicionante que me agarre a coisa nenhuma nem responsabilidade que me ate a poste algum; como um cão vadio, sem casa, sem dono. não se passa rigorosamente nada. e o vazio transporta-me inevitavelmente para sítios onde já estive, pessoas com quem já me dei, a quem já me dei. visões de um passado não tão distante que me perturba mais do que eu poderia sequer remotamente supor. é um jogo de especulações misturadas com lembranças ainda vivas demais, sangue quente que não teve tempo de assentar, de secar, de desaparecer. parece impossível. começa agora. é preciso descontracção, uma cabeça descansada, usada mas fervilhante, traída mas atenta. reinvento-me pegando nas pontas deixadas por quem não soube prestar a devida atenção. perdoo-me por olhar ao espelho e me lembrar do que julgava já esquecido.

quinta-feira, junho 23, 2005

5.2.02 - 02h31m

dei por mim deitada na cama à procura de qualquer coisa para escrever, lembro-me de quando até guardanapos usava à falta de uma folha de papel. poemas, histórias corriqueiras, revoltas interiores conhecidas só das sebentas e dos cadernos, segredos e obscuridades e tudo o que pairasse no meu pensamento. hoje é-me difícil encontrar uma coisa que seja digna de uma transposição. não sei porquê. talvez seja a tal "falta de inspiração" da qual muitos se queixam e que se provoca desesperos em forma de folhas em branco e canetas imóveis. combatê-la então. de certeza que qualquer coisa há de acordar em mim a divagadora, fazer-me seguir por caminhos tortuosos de perguntas e respostas, problemas e soluções, íntrinsecas meditações que me tomem o espírito e me toldem o raciocínio, diluindo-os na mais pura das emoções. mas o quê? o raio de sol ou aquela sombria e inexplicavelmente sedutora claridade das manhãs chuvosas, em que o céu se baralha em tons de cinzento e branco e me faz sonhar com amanheceres longínquos e gelados? o sorriso infantil, inocente, perdido em purezas que creio raras? ou a voz, a voz especial de alguém importante que me dá calafrios e me remete para tremuras inconvenientes quando é suposto estar o mais natural possível? o livro que leio, a música que oiço, as palavras que me dizem e que balançam na minha cabeça em danças que me remoem os pensamentos? talvez nada disto me interesse verdadeiramente. talvez aquilo de que eu preciso seja apenas uma palavra. por muito pequena. ou um olhar. por muito indiferente. ou um toque. por muito inocente. ou talvez o mais importante seja mesmo o que fica por dizer, que fica por escrever e que não se transmite por nenhum sentido mas pela emoção partilhada com aqueles de quem eu gosto. talvez o mais importante sejam mesmo as folhas em branco e as canetas imóveis.

segunda-feira, junho 20, 2005

de estratégias da expropriação dos problemas

recuso-me a acreditar em soluções fáceis. em estalares de dedos, em escapes alienantes, em santos milagreiros. a beleza polida e forjada da fraqueza de carácter não se equipara nunca à coerência isométrica do pensamento lateral, ao poder da comunicação, à abordagem das perspectivas, à pega de caras.

há nas narrativas de tudo quanto possa ser adjectivado de milagroso um cheiro bafiento a auto-comiseração e credulidade miserável, multidões em delírio histérico. não que não exista benefício na crença em alguma metafísica, mas só se esta servir de impulso, de motor de arranque, de inspiração a uma qualquer resolução concreta. o verdadeiro milagre é a coragem desinteressada, é a paixão. é o olhar para dentro antes de olhar para fora, mapear as inconstâncias e atacá-las estrategicamente, como pragas de parasitas que se destroem com minúcia e determinação. palavras-chave. realizações que pedem muito mais do que simples ambição abstracta, feita de expectativas e sombras de desejos - pedem qualquer coisa mais viva, mais forte. qualquer coisa que não se presta a superficialidades nem a conformismos. disse sun tzu na sua "arte da guerra" que, para termos a garantia de que podemos vencer à vontade cem batalhas, temos de nos conhecer a nós próprios tão bem como ao nosso inimigo. conhecimento - e o discernimento para ver além das evidências.

sexta-feira, junho 17, 2005

esboço (de qualquer coisa muito, muito maior)

quero poder mostrar-te o mundo num carrossel, o amor num bago de uva ou num raio de sol na janela. percebes-me quando falo contigo, percebes os meus abraços, os meus sorrisos, a minha voz zangada, sentes a minha falta... sabes que és parte de mim.

quarta-feira, junho 15, 2005

lost in translation


é na infinitude do abraço que está a chave do que não se quer abrir por si. porque se é mais difícil a intimidade do que a aproximação, porque se é no olhar que se perde que está a resposta à pergunta que não se faz, porque se é no instante do toque que se apercebe a invisibilidade do momento perdido então a tradução está no indízivel. e no irrepetível.

o apelo (post calcutá)*


(sebastião salgado, "gourma-rharous", mali, 1985)

é o sonho de criança, forte e recorrente, que ganha vida de cada vez que eles aparecem, no colorido de um telejornal ou no canto impessoal da estação de metro, de mãos estendidas. os infinitos "eles" que constroem a nossa civilização (des)equilibrada em torres frágeis de cartas imensas em que os trunfos não são de maneira nenhuma suficientes para se fazer um jogo minimamente decente. são tantos, estão em todo o lado, devidamente desenquadrados da cultura do plafond de crédito, das férias anuais seja onde for e das palmadinhas nas costas - a cultura dos olhos bem fechados. a subsistência, meus amigos, torna-se uma questão de pertinência material precisamente porque há desigualdade. em lugares onde a vida humana tem um valor irrisório, onde estamos mais próximos da nossa origem animal, onde qualquer pre-concepção ocidental é desmanchada num instante. não falo por experiência. tenho pena. imagino-me cara a cara com a antítese de tudo o que sempre conheci - e a tentar descobrir as semelhanças, já que as diferenças estão à vista de todos. diz hobbes que os actos verdadeiramente altruístas nunca deixam de ser egoístas, na impossibilidade de negar a natureza egocêntrica do homem. tem razão. não me tira a vontade de poder fazer qualquer coisa, o derradeiro sacrifício, a possibilidade de ser uma abstracção de mim mesma para benefício de perfeitos desconhecidos. pior. desconhecidos com carências. e ver com os meus olhos, para poder acreditar com mais força, que o que mais falta faz ao homem é o espírito. ver nos olhos de um doente, de um refugiado, de um simples desfavorecido, os meus. e perceber que não há em mim nada de extraordinário - como todas as outras, uma pessoa. [se é que ainda alguém sabe o que isso é]

*aventurando-me corajosamente no campo traiçoeiro da "humanidade" - sem pretensões de sacristã ou de filantropa, pretendendo apenas enfatizar um ponto de vista que é universalmente meu e me manter bem ligada à realidade que é a de um mundo que se estende muito para além de bairros e avenidas. gostava de ter força, isso gostava. contento-me com a humildade de quem continua a querer aprender o que é ser humano.

terça-feira, junho 14, 2005

in the sequence of unfortunate events

cada vez mais me convenço da pouca importância do material. não é garantia de nada a não ser estabilidade financeira. constroem-se as aparências, consciente ou inconscientemente - e depois assiste-se confortavelmente ao desmoronar do castelo, até que todos os panos caiam e a verdade, seja ela qual for, possa finalmente ver a luz baça da escuridão.

ensaio

sim, eu sou narcisista
e também egoísta
gosto demasiado de mim para tentar sequer fazer crer o contrário

mas em mim há mil caras, mil cores
serigrafias de muitos amores e para
cada meretriz uma madre teresa
queria ser uma estudante americana
uma matrona siciliana ou uma actriz
de cinema viajando sem parar
dona do mundo bela e sem porquê
no olhar de quem vê esse poder e
esse transmutar de aquiescências
médica do mundo ou bailarina e nos
teus olhos nada mais que uma menina
cientista ou feiticeira é tudo igual
talvez até soldado israelita de pele
brilhante e voz aflita cantora lírica e
traficante de droga porque não
e com as minhas mãos poder tudo e
levar no espírito um infinito entrudo
para explodir com as nações unidas

sim, eu também me canso
e esqueço até
porque vale mais um pássaro na mão do que dois em vôo kamikaze

terça-feira, junho 07, 2005

défices

achava que as pessoas que buscavam atenção constante tinham inseguranças irresolúveis, talvez perturbações em passados mais ou menos distantes que as tivessem deixado de alguma maneira deficitárias. deixou de achar piada quando descobriu que na maioria das vezes eram só reflexos de uma tremenda insipidez.

terça-feira, maio 31, 2005

devorada


devoradinha, cortada aos bocadinhos pequeninos, estraçalhada e esfaqueada e fatiada fina. qualquer coisa que o seja - com força. poder e decisão e vontade e confiança e tudo o mais. a minha intensidade pede força - a minha pequenez também.

domingo, maio 29, 2005

em papel e caneta


são imensidões de azul-prateado que se estendem à minha frente. insurgem-se no meu vazio garrido e levam-me ao colo, de olhos bem fechados, para recordações próximas de outras cores - outros calores. encho-me de uma satisfação calma e imensa, de sorrisos desbragados e cinzas que se desorientam na inquietude dos movimentos e das sensações. são as tardes de primavera [quentes, em que o tempo - sempre tão pouco - parece querer congelar] que se opõem a este vento solitário e descontrolado que quer tomar conta de mim. eu congelo, com o tempo, para me derreter logo a seguir, em imagens que me torturam por não as conseguir guardar. não as guardo mas sinto-as: essa sensualidade que não é pictórica, não se ensaia nem vem em livro nenhum. é o que sinto contigo, sou eu, és tu. somos os dois quando abro os olhos. nas minhas mãos, o azul-prata do mar e do sonho.

sexta-feira, maio 20, 2005

cogitando

correndo, discorrendo, caindo na armadilha da filosofia barata, do pensamento fácil, da palavra falsamente profunda. escrevendo e reescrevendo, vezes sem conta, nas tais linhas que se prolongam como grandes estradas largas e infinitas em que os mecanismos da razão e da emoção se dissolvem num contraste. essa res cogitans que somos todos, a nossa cruz, abraçamo-la apesar do seu peso desmesurado e constante, e seguimos em frente como atlas que não têm outra escolha, outro remédio.

é o pensar que às vezes me trai. puxa-me e repuxa-me para mim, distrai-me e afasta-me do que tantas vezes devia ser. sou esmagada pela ponderação, pelo laissez-faire, pela hipótese de futuros que não o sejam nunca e que não consigam fazer mais do que torturar-me na hipérbole dos meus sentimentos. sei disso. sei que sou uma só, cabeça e coração lado a lado, aparafusados um ao outro numa eterna relação de intensa dualidade: os dois lados da moeda, mas na mesma face - sempre.

confundiu-me a explicação científica. perturbou-me e atingiu-me bem no âmago, relativizou-me e tornou-me, talvez até um pouco absurdamente, em apenas mais uma (porque, realmente, é o que sou em última instância). não me falta a humildade para reconhecer a minha pequeneza num plano cósmico, não se trata disso. todos os dias me asseguro da fragilidade de todo o equilíbrio. trata-se de querer acreditar - nessa dimensão espacial do pensar, nessa metafísica onde o incorpóreo toma forma e se destaca e todos nós somos mais do que apenas um.

quinta-feira, maio 19, 2005

[...]

presa
presa, amarrada, agrilhoada, capturada, cativa
de um único sentir - de uma única dança: a que danço contigo,
que me abraça e me leva ao colo para o meu pedestal.

perdida num sopro e achada
num gesto simples, num olhar cheio, num sorriso fugaz
e inspirador [revelador].

(em bocados de escuridão despedaçada e reconstruída, de ânsias devoluta, explosiva e inteira no exercício pleno do seu hedonismo e da sua paixão.)

terça-feira, maio 17, 2005

vejo


através dos sonhos e das paredes, das ambições descontroladas e das vontades exigentes e que me desgastam em ciclos de quente e frio desesperante. através do que é, do que agarro e toco e transformo, em manipulações efémeras e que só o são porque nem sempre me apetece deixar-me ir; gosto de ser controlada, e muito, gosto de me sentir peão ou cavalo sabendo de antemão que posso ser rainha sempre que me apetece; através de volteios e de sopros de meias-verdades e mentiras escondidas na opacidade da inflamável distância que perturba e corrói, na inalteração das constantes construindo a sua torre de camuflada indiferença. através das torres e dos castelos, da luta, dos leques que cobrem os olhares e esfriam as palavras, dificultando o que seriam de outro modo inatas traduções, tão agradáveis na sua simplicidade e delicadeza.

cega-me tanto quanto quiseres, eu vejo tudo.

life in red-tape heaven

[bom dia, estou caducada, quero voltar a ser eu] olhe não se esqueça de tirar a senha para ir para a fila tem que comprar o impresso no guichet pois, concerteza que tem de pagar próximo ai então se não tem vai ter que ir buscar o documento olhe a culpa não é minha não fui eu que inventei o sistema [transporte, poluição, gente, cinzento, fumo, gente] desça para o piso -1 talvez aí encontre o que procura [gente, cinzento, ar que pesa, gente, vazio] pois isso é aqui mesmo então não sabe mas como é que não sabe claro que tem que saber pois assim não a posso ajudar aliás vai ter que ir a sítio tal para conseguir o que quer posso-lhe arranjar aqui mas espera o dobro do tempo e vai-lhe custar o dobro do dinheiro [adeus, bom dia e vá-se foder mais os seus assentos] é aqui sim pois mas não está aqui de facto é esquisito veja lá se se consegue lembrar talvez lá em baixo eles lhe saibam dizer onde é que realmente está porque assim sendo...

[continuo caducada - azar]

sábado, maio 14, 2005

aparte

[deixar que o despir me dispa, de toda a ansiedade, de toda a calma insuportável que me trava e me encandeia com a sua insensatez. querer que o sentir me leve, e me deixe tocar-te, num mo(vi)mento quase insuspeito, imperceptível, conduzir-te com a estática, o magnetismo que me domina e me perde em eternidades tão fugazes e tão permanentes...querer que me enchas e me preenchas, não me deixes espaço para nada mais, segurar-te com a respiração de quem sente e deixar que me deslizes em fios de prazer imensos, tão leves e determinados na sua certeza e na sua satisfação.]

sexta-feira, maio 13, 2005

da melancolia em flor

brilhando em toda a sua soberba feita virtude, da grandiosa manipulação do prazer e da dor retirando o seu verve. como os tais dois gumes de uma só faca, existindo numa simbiose útil e desacerbada, como razão e emoção, num equilíbrio falsamente frágil dominando todo o sentir.

e sendo teatral e dramática, querendo mais público, exibindo o seu esplendor triste e fascinante como uma qualquer lua prateada realçando o escuro profundo do céu à volta. sobrevivendo de melopeias e sensibilidades, injectando o seu veneno doce e confortável enquanto se desdobra devagar em instantâneos a preto e branco.

florindo em sorrisos tristes e luminosos olhares desesperados...e (in)satisfeitos.

quinta-feira, maio 12, 2005

shuffle - repeat

(pausas que são reinvenções, juntando os bocados de nada como se fossem puzzles montados em câmara lenta, ao som de pianos quentes e distantes, ressoando no infinito de tudo isto e de muito mais. é um todo, afinal. é uma perspectiva multidimensional, cheia de pequenas sombras de pequenas luzes de pequenos focos de tudo. é uma orientação, um ponteiro, um guia de qualquer espécie, gurus imaginários que povoam histórias de distâncias infinitas em que tudo se baralha, tudo se parte, tudo se dá. como um jogo de azar em que para nada serve a perícia, o conhecimento, o raciocínio. são palpites quebrados e requebrados num contínuo apostar dos tais nadas que fazem o todo. palavras soltas, sem lógica aparente, sem correntes que as restrinjam, sem aspirações. só inspirações...)

quarta-feira, maio 04, 2005

querer os quereres

e os poderes, os deveres, os teres e os não-teres, todos na mesma dança acústica, frenética, deseperada e enevoada, feliz na sua melancolia, sempre sol e lua de um só tom, de um só brilho.

segunda-feira, maio 02, 2005

e voltando à realidade...

...como quem não quer a coisa, escrevendo em paz e sossego. sem dores de cabeça ou do que for, isso não, porque eu detesto ter que tomar remédios. gosto de sentir que posso controlar a dor, que ela passa mais cedo ou mais tarde, que não há-de ser nenhuma fórmula química comprimida que me vai salvar do remoinho.

...assim como se estivesse em retiro, fazendo uns exorcismos verbais que atenuem o cansaço do pensar e me dêem a satisfação de que preciso. como as noites em que me deito a saber que não há nada no dia seguinte que me arranque da modorra e me obrigue a correr por aí como se fosse uma louca subjugada a tiranias sociais ou de qualquer outra espécie.

...sentindo-a.

mataste-me (fantasmas)

mataste-me e eu morri. não quis sequer pensar em tentar lutar, resistir, sobreviver...mataste-me e eu, na minha placidez inexperiente, deixei-me morrer. e morri tanto, devagar, em bocados de tempo e de tortura que pareciam eternos e irremediáveis. e foram, realmente. sufocaste-me no teu olhar e no teu sonho imberbe (quando os dias eram curtos e as noites intermináveis e nós não pensávamos nunca) e esfaqueaste-me com a tua indiferença no dia em que não me conseguiste enfrentar. mataste-me e eu morri, sim, de uma morte intensa, quase lírica, se não fosse a mesquinhez que a enfeitou de grinaldas e a acompanhou sempre, tão inútil, tão cínica, tão grandiosa.

mataste-me, eu morri. [os teus olhos morreram também comigo]

quinta-feira, abril 21, 2005

elogio da amizade verdadeira

(anos e anos que se transformam em eras, que nem a pior das inconstâncias consegue travar, verdadeiro sentido dos laços que se criam entre pessoas que se aproximam e acabam por se tornar indispensáveis na sua presença; tanta cumplicidade, por vezes silenciosa, marés de compreensão a que episódios fellinianos dão o brilho que nos torna essencialmente inseparáveis: episódios que se recordam para a vida, desde as irresponsabilidades tão típicas da nossa adolescência intensíssima – ou “como viver as coisas na altura certa”- até aos despertares da nossa idade adulta em que a frase “só a nós!” se torna uma constante...pudera! tantas as noites ao acaso, em que a supostamente depressiva “falta de programa” nos dá doses de surrealismo hilariante, bocados de filmes que não o são, é mesmo a nossa realidade, com tudo o que tem de bom e de mau e de único.

acordar às gargalhadas por ser tão impensável o sítio onde estamos a dormir, adormecer a rir porque não conseguimos controlar as esferas que nos entram na cabeça, e passar horas e horas em conversas intermináveis em que os assuntos não se esgotam, pelo contrário, nós sabemos bem como prolongar os nossos devaneios. e querer que o mundo inteiro nos compreenda e viaje connosco, mesmo sabendo que às vezes é tão intensamente díficil...somos felizes, acho eu. e é isso que melhor nos define. como pessoas. como amigas.)


terça-feira, abril 19, 2005

cegava

embrulhava-se em papéis de rebuçados de sabores vários e sabia que nas alturas em que não pensava era genuinamente feliz. não que não o fosse no resto do tempo, era tão fácil simplificar como complicar. e se a vida era uma sucessão de luas tão cíclicamente iguais, o melhor era mesmo agarrar os sóis que se lhes interpunham. brilhos diferentes, gestos iguais. e naquela sequência do despertar-adormecer havia sempre a incerteza dormente do amanhã; quem lhe garantia que o sol não explodiria no dia seguinte, deixando a escuridão e as migalhas flutuantes do que sobrasse dos calhaus onde assentava a vida ou a ausência dela? pedras e pouco mais. fogos-fátuos, águas plácidas, iridescências, vapores e fumos vários. reduzido a nada? ou seriam já o nada que teimavam em negar? regozijava-se com as névoas tímidas e envolventes dos cigarros que não fumava, imaginava-os pousados sobre os cinzeiros, lânguidos e deliciosamente mortais, ou não era assim o prazer do vício? como todos os vícios que se lhe entranhavam em cada minúsculo bocadinho de pele e a relaxavam, esfusiante e desgarrada como grãos de areia enrolados naquelas ondas frias e fortes de setembro. e às vezes fechava os olhos e sentia os gestos, os cheiros, os sabores que a elevavam e a desfaziam em féretros de luz rodopiantes. quase que cegava do êxtase, da recordação, da antecipação de passados, presentes e futuros baralhados em novelos que não queria desfazer. e não pensava e isso era tão absurdo e tão deleitante. descansava, no meio da agitação e do ardor e do querer. e sentia-se tão violentamente bem. já nem distinguia com exactidão os sonhos das realidades, das vontades, das possibilidades. e sabia bem que tudo não passava de uma enorme e avassaladora virtude, por muito que a imoralizassem. cegava. ah, mas os gestos, os cheiros, os sabores: esses reconhecê-los-ia em qualquer parte do mundo.

quinta-feira, abril 14, 2005

no decurso de conversas de café

a mim apetece-me dizer que sim. e que não, e que talvez, e que nunca se sabe, logo se vê, por mim tudo bem. porque esta história das pessoas é um desnorteio. raio de acaso cósmico (como eu gosto desta expressão!) que nos faz assim. assim ou assado ou como for, que eu hoje não estou para grandes pretensões literárias e as expressões gastronómicas servem muito bem para o caso. vernacular, é como eu estou. mas disfarço. pois claro. é como a outra mais as suas fúrias injustificadas. deixa lá. se calhar está felicíssima e isso é o que acaba por interessar. também já nem tenho paciência para grandes juízos de valor e desde que ninguém me chateie são todos livres de fazerem o que bem entendam. é o livre-arbítrio, ou o que lhe quiserem chamar. e se bater com a cabeça na parede é azar. eu já parti um vaso com a minha e, tirando a cicatriz, não me fez mal nenhum. e tu e eu e todos nós o melhor que temos a fazer é exactamente isso: o que nos apetece. a mim apetece-me dizer que sim. e que não. e descobrir o que há entre o nunca se sabe e o logo se vê.

quarta-feira, abril 13, 2005

normal

quando sabes o que queres saber achas que há sempre qualquer coisa que ficaste por saber. não soubeste tudo. saberias, se tivesses realmente sabido mas...é sempre aquele "mas" que te deixa a pensar se realmente sabes ou algum dia saberás. sim, porque o que soubeste já sabes, mesmo que não tenhas sabido qualquer coisa que deixaste escapar. é o problema do saber. quanto mais sabes, mais queres saber. e quanto mais tentas menos ficas a saber e às tantas não sabes é nada. é fodido. mas é bom saberes que por mais que saibas há sempre um saber qualquer que fica...por saber.

domingo, abril 10, 2005

hoje faz um ano

sexta-feira, abril 08, 2005

life in anarchy wonderland*

(sala. caixa de bombons acabada de abrir.)

m - olha, vamos dividir estes já [porque são os melhores].
eu - não é preciso. se já comi um sei que não vou comer os outros cinco.
m - sabes qual é o teu problema? és demasiado civilizada. eu chegava aqui e comia todos.

*ou como o mais inocente dos diálogos se pode transformar num poderoso "insight"

quarta-feira, abril 06, 2005

do amor fraternal

há sentimentos que não são passíveis de descrição, são impossíveis de fechar em qulquer linha, de traduzir em qualquer palavra de qualquer língua. são emoção pura e inexplicável, daquelas que só o sangue pode fazer sentir, o sangue ou o amor incondicional ou qualquer outra lógica dizimada que se transforme em imensa espiral de grandiosidade incontida – de amor e é mesmo disso que se trata.

(criatura maquiavélica de infímas proporções e caninos desmesurados, carinha inocente e mente distorcida – viu-se no que deram aquelas infindáveis historietas do rapaz e o rapaz e o rapaz...e as môas, coitadas.)

há convivências que são inevitáveis, eu diria até forçadas num sentido pacífico mas conformado, e ainda bem que assim o são. porque quer sejam acasos, sortes ou estrelas de qualquer espécie, a verdade é que é mesmo muito bom quando as circunstâncias se tornam realidades indispensáveis – e qualquer ideia de “fim” se torna, em si própria, incongruente e impensável.

(de cozinhados e cogumelos, da timidez e de outras histórias, tantas noites e tantos dias em que a conversa nos nutre, como se precisássemos de impulso!; de “reuniões” furtivas, da partilha e do verdadeiro significado do que somos “nós”)

há pessoas que são impressionantes, por tanto que significam mesmo que nem sempre se apercebam. donas da humildade que lhes permite fazerem o que quiserem e transformarem as lágrimas em pingas de açucar deslumbrado enquanto despertam sorrisos que antes de mais aquecem sem esmorecer. e nos fazem querer para sempre ser parte de toda a História.

(a nossa. eterna.)

segunda-feira, abril 04, 2005

(des)creio

descreio porque parto, sim, mas de mãos
atadas e olhar despedaçado; porque não
são os caminhos tortuosos os que quero
percorrer; porque me deixo enlear pelo
doce sussurrar da cobardia que me sopra
murmúrios de calor – engana-me...

descreio porque não sou forte, não, apesar
de não querer nada mais com o mesmo
furor, e pela mesma via se arrefece o meu
coração (perdido, absorto, já dado quase
morto), em toda a sua pequenez me puxa
e com os seus vapores me seda

numa tranquilidade insuportável.

(e creio, creio mais do que nunca, só
e apenas - porque não deixo de sentir)

sábado, abril 02, 2005

apetece-me (post destruidor)

partir a loiça, toda a linda loicinha, os pratinhos de merda e os da vista alegre, os copos altos, os de vinho, os de whiskey, os balões e as flûtes do champagne. as companhias das índias, as travessas e os tabuleiros, os pratos grandes, os de sopa e os da sobremesa, os de fruta e os de doce e até a porcaria dos marcadores, os azuis, os brancos e os cor-de-rosa e já agora os de plástico, se os encontrar. apetece-me partir chávenas de café e de chá, canecas, saladeiras, copos de shot e jarros de água, pires e açucareiros. e aquelas jarrinhas para o leite do chá também. e já agora porque não as manteigueiras, aquela gigantesca travessa das trutas, as taças das sobremesas e os cálices de vinho do porto também. tudo, tudinho, estilhaçado em milhões de bocadinhos de vidro e de cerâmica desfeita, mal-feita e contrafeita.

bem feita.

(e de uma vez só aquela terrina monstra da sopa, horrível, medonha, que nunca foi usada nem nunca há-de ser.)

quinta-feira, março 31, 2005

estava a olhar para o relógio...

...e apercebi-me que não olhava para um relógio há tempo demais. desabituei-me. a ver o tempo passar, o ponteiro dos segundos naquele tic-tic angustiante mas ao mesmo tempo apaziguador. a esperar que o ponteirinho passe o "12" para que o dos minutos avance também, lento mas determinado. a fazer o tempo passar. e o ponteiro das horas, mais pequeno (esse confesso que nunca fiquei tempo suficiente para o ver passar, mudar essa fracção com que nos controlamos e ao que fazemos - a hora, o tempo...).

já não olhava para um relógio há que tempos!

mas olhar com atenção, como não se faz aos digitais, que nos impõem o número em toda a parte, no computador ou no telemóvel, brutos e insensíveis ao tic-tic que se quer constante mas suave no seu movimento. para nos fazer crer que o tempo é um inevitável fluir, um ritmo que quase embala na sua absurda (mas tão concreta) cadência de controlo.

é como se os ponteiros fossem eufemismos para o tempo que passa.

segunda-feira, março 28, 2005

estou a escrever sim...

e para quê? para repetir incessantemente o que já foi escrito em linhas intermináveis onde milhares de letras se compõem com mais ou menos espaço entre elas, combinações imensas em que tudo o que se diz já foi dito mais ou menos vezes, com mais ou menos objectivo?

para quê? para poder ficar com a certeza de que o que escrevo não leva nem tão simplesmente irá levar a lado nenhum, mantendo-se nesta galeria de tantos quadros escritos, traduzindo desta maneira estática aquilo que só pode e deve ser solto em palavras, palavras que fluam acompanhadas naturalmente pelos gestos que lhes são indissociados?

para quê? para me poder tranquilizar, sabendo que há destino para estas letras, mesmo que o destino seja tão ensombrado pela incerteza que eu não o possa nem remotamente controlar (ainda que saiba que esse é precisamente o propósito do destino)?

não. nada disso.

escrevo porque quero mesmo, porque me apetece, porque me sabe bem toda a conjunção surrealista destas palavras silenciosas, porque me sinto lindamente neste exactíssimo momento em que os meus dedos deslizam (ainda que nem sempre com aquela decisão), porque apesar de toda esta conversa do que se diz ou se deixa de dizer estas letras entrançam-se naturalmente e só isso é suficiente para me satisfazer...

...for the time being.

domingo, março 27, 2005

a mão

suspira e segue o seu caminho sem saber
o que procura
nem o que vai encontrar

segue e revela-se e atropela-se na sua insensatez, e em cada
instante em que inspira -e suspira- perde-se
numa calma inconsequente que a faz

delirar em sombras de um qualquer sonho
difuso e incoerente que se perde em
cinzentos de chuva que abraçam os sentidos

e os fazem explodir em estilhaços de cores mil que não se
distinguem de tanto que se envolvem
até se dissolverem e se perderem

num qualquer adeus.

segunda-feira, março 21, 2005

encadeamento

(resumido)

não posso deixar de me sentir embrulhada numa melancolia que nem é doce nem amarga, que não é nada...

encontros e desencontros de nadas que vão atropelando outros nadas e os desequilibram como se o equilíbrio deles não fosse tão frágil como todos os outros. faíscas de luas que assombram as rotinas e os egoísmos e se traduzem em palavras que cada vez vão tendo menos sentido. ou se calhar não, mas isso depende de tudo e dos nadas e da coerência que se desintegra em velocidades cósmicas. como se a escuridão e a calma não fossem susceptíveis de qualquer perturbação, mas são. é tudo uma questão de sobrevivência, a análise que se vai a custo tentando fazer, ignorando os evidentes e os presentes e ansiando por passados e futuros que se confundem em melodias que se ouve pela primeira vez como se fosse a quinquagésima... são tudo clichés, todas as realidades que se sabe que existem mas que se espera que nunca se atravessem no caminho da estabilidade e que se constroem e se entranham sem sequer se manifestarem. todos os erros que se fazem e se deseja que não se repitam, mas o destino ou o raio que o parta parece que não respeita vontade nenhuma e há pessoas que têm uma sina. isso sei eu de certeza, apesar de secretamente querer que não seja assim e tentar acreditar que tudo é possível e que há sempre hipótese de subir

mais alto.

domingo, março 20, 2005

in london town


on the loose. living in the grey for a whole week and so typically complaining after five miserable minutes of arriving. and then getting lost between some moroccan food in a very glitzy restaurant and poor sashimi in some japanese fast-food joint. and how can they live after 11pm? not even the lebanese blonde had any luck with the off-license gentleman. no booze at all. and that stupid english rain that kept falling, ignored by the oblivious londoners (more than obviously used to the intermitent showers). going to the foreign office and hopelessly feeling like i was in a spy flick of some sort. blame the russian girl who claimed i had a lost twin living in st.petersburg. enjoying (or at least trying to...) microwave thai noodles with a supermodel and some asian people in a very lame hotel room. actually it wasn't that lame, i was just blinded by the lack of alcohol. no, actually i think there were a couple of nights i got even: the chianti the nice italian in the restaurant so kindly offered us (me being slightly mediterranean and everything...it's amazing where olives get you) and the whiskeys that the south-african guy kept buying me in the hotel bar. i guess he was just trying to get me drunk but you can't do that with just four glasses, who was he kidding. oh, and that obnoxious australian girl who kept talking in some hideous high-pitch tone like there was no tomorrow. and soho, that was cool. sort of. must not forget trying to give an acceptable speech to an unbelievably massive audience with a monstrous cold (pausing every thirty seconds to cough...miserable performance). hell, i did try...but i guess two-hours sleep didn't help much either. then trying desperately to explain an american 15 year-old that portugal isn't anywhere near poland. and, no it's not part of spain either you ignorant twat. truth is, no matter how many times I fly in and out, there'll be nothing quite like the first.

sábado, março 19, 2005

das floristas

envoltas em ares que se respiram húmidos, com o cheiro da terra no nariz e nas pontas dos dedos e deixando gotas de água perdidas em fuga por entre as pétalas de arco-íris. sempre gostei de floristas e do celofane horroroso (na maior parte das vezes) que usam para cobrir aquelas amálgamas de natureza raptada e controlada, não menos bela por causa disso. beleza constrictor. cheiros de rosas, gerberas, túlipas e estrelícias (as "lindas flores") todas em alegre convivência por entre fetos e outras folhagens, algumas inomináveis outras que dão saudades e vontade de voltar aos jardins desaparecidos. e nos arranjos que se vão construindo com alguma rapidez, a perícia de quem domina caules e folhas, nas enormes coroas funerárias, nos molhos de rosas amarelas, nos cor-de-laranja e nos lindíssimos azuis artificiais, no cheiro, aquele cheiro intenso a húmido e a terra e a natureza amordaçada...

sexta-feira, março 18, 2005

considerações maltusianas em observação informal

"locke afirma, se a memória não me atraiçoa, que o esforço para evitar a dor mais do que a busca do prazer constitui o grande estímulo para a acção na vida; e, contemplando qualquer prazer em especial, não seremos impelidos para qualquer acção a fim de o obter, até que a sua contemplação tenha continuado por tanto tempo ao ponto de atingir uma sensação de dor ou desconforto pela sua ausência."

(thomas malthus, ensaio sobre o príncipio da população)

que a dor é motor para a procura de um prazer que a dissolva ou afaste é mais do que óbvio. mas que a sentimentalização racional se sobreponha ao mero aproveitamento (no sentido de apreciar o mais possível) daquilo que serão, mais do que prazeres, os temperos da nossa existência enquanto seres humanos pareceu-me já inverosímil mas, por saber que é real, parece-me só deprimente.

quinta-feira, março 17, 2005

dreaming...

harsh voices that said things so soft
but they'll never be heard again, they live only
in the heads of those who remember.

flowers of exotism and neverending
colours that will never bloom again but
in the heads of those who remember.

times of warm laughter turned bitter
and the look of those who strive everyday
to make the worse a little better.

I dream with green eyes that have grown
opaque and in them I search for a gleam
that I'm not really sure was ever there.

losing myself between the pleasantries
of the memory and the bright hues of the
ever so tiring today, if only it would stop

attacking me so blandly and tenderly
throwing its tentacles of hope and objectivity
around my peaceful resignation (desperation).

I dream with a day when I finally find
myself and everything that surrounds me
starts making just that sorry bit of sense.

until then it's grey sunny afternoons and
keeping all the memories away until they
become uncertainties and eventually melt

into ringing bells in autumn mornings
where you can actually smell what is now
in the heads of those who remember.

quarta-feira, março 16, 2005

o dia em que mergulhei da ponte sobre o tejo

era assim um dia de sol, como estes que têm estado. e ainda bem, porque quando está nevoeiro é mais difícil planear a queda, calcular o mergulho...porque eu não me atiro de sítio nenhum sem saber exactamente o que está por baixo. às cegas não, por princípio e por contrato. coitada da minha mãe, ainda eu mal andava e já conseguia trepar para cima das cadeiras para depois me atirar de cabeça para o meio do chão, fosse chão de madeira, cimento ou relvado. se não é loucura? há tanta gente louca neste mundo...e eu ao menos não faço mal a ninguém. se alguém se magoa sou eu e só eu e mesmo assim depois de tantos anos a cabeça já se habituou à pancada. dizem que sou imortal lá porque eles se tentam atirar de um terceiro andar e em vez de se levantarem despedaçam-se todos, hospitais e não-sei-quê...mas isso é porque têm medo. não percebem nada e acham que a queda em si não tem nada de especial, é so gravidade...é uma "loucura", dizem-me. loucura é perder a sensação da queda, a cegueira que dá quando o tempo e o espaço congelam naquele corredor de vazio e nada mais.

porquê a ponte? porque é maior, não em altura. já saltei de prédios maiores. o que me cativa é o espaço à volta, só água, as duas margens do rio a abraçarem-me e o verde e o azul a confundirem-se. só é pena o estado em que está o tejo, assim não dá para apreciar devidamente o mergulho. mas antes assim do que o alcatrão, já me fartei de aterrar no alcatrão. é duro demais, ao fim de um tempo começa a fartar. a pancada é muito seca, a àgua deixa-me continuar com a sensação de queda durante mais um bocado. se não me canso? nunca, ora essa. a vida para mim não é vida sem uma boa subida, daquelas que quando chegamos lá acima podemos ver tudo à nossa volta e pensamos em como o mundo é tão grande, sabe?, que é para depois, de um salto só (sem hesitações, sempre que hesito não salto porque é perigoso demais) deixar tudo para trás e sentir na barriga aquele frio da coragem alucinada. faz-me sentir gente, mesmo. e depois a queda, o aterrar, a pancada que me diz "acabou-se". e me deixa a pensar na próxima, que isto é mais que vício. quando se começa nunca se pára.

e os dias de sol são muito melhores para isto, entende?

terça-feira, março 15, 2005

o sonho (vislumbre de pseudo-poesia)

o sonho...ou a virtude
a virtude de ser leal, de ser real
de saber que para tudo tem de haver sempre
um limite

um fim?

mas o sonho...o partícipio da imaginação, a verdadeira liberdade
liberdade de acção, de reacção, de solução
a derradeira afirmação do eu melhorado

do eu sonhado

(do sonho e da virtude nem exagero...nem
inquietude)

segunda-feira, março 14, 2005

(intervalo)

(a pensar no que foi)

são tantas as memórias e tantas as vitórias
que não há dissabores que se mantenham perenes.
enquanto os cinzentos se enchem de cor, devagarinho e a luz da recordação

baralha tanta coisa.

(a pensar no que será)

desenhos de nuvens de rolos fotográficos (se é que ainda os há...)
onde se vê uma luz de cor indefinida, pode ser quente, pode ser fria
e onde os contornos das imagens se alteram todos, todos

os dias.

(pensando no que é)

...

"é o preço que temos a pagar..."

não por não termos nascido homens. graças a um qualquer acaso de cosmos e genética, estamos num contexto espaço-tempo que até nem é desfavorável ao nosso belo género. não.

é por não querermos subjugar as nossas vontades a pseudo-convenções ultrapassadas, resquícios de mentalidades que simplesmente já não se usam e que nada mais são do que apanágio de gente, simplesmente, mal educada. é por querermos ter amigOs, viver em paz e sossego sem que haja intromissões injustificáveis nas nossas vidas. é por querermos ser autónomas e decidir das nossas sortes e dos nossos azares sem que com isso tenhamos que ser imediatamente associadas a qualquer coisa que seja. é por termos prazer em viver e nem um pingo de vergonha de o admitir. e sair à noite todos os dias se nos apetecer e passar o dia inteiro a comer se estivermos para aí viradas e estar com as pessoas que quisermos, quando quisermos, indiferentes a géneros, cores, classes sociais e outras tretas dessas. por não nos querermos prender a efemeridades e por querer que os nossos sacríficios sejam válidos e reconhecidos.

é o preço que pagamos por não querer ser como as outras.

domingo, março 13, 2005

exercício psicanalítico em noite de calma total

é uma disfunção crónica, uma eterna e definitiva incapacidade de ter uma só perspectiva das coisas, das pessoas, das ideias. não sei escolher, não sei separar, não sei concretizar. e este abstracto que domina tudo o que desde sempre fui e sou, que me constrói em antagonismos e me faz compreender perfeitamente o significado da relatividade, não deixa de me surpreender a cada dia que passa.

porque eu não acredito em caminhos únicos, em perspectivas inalteráveis, nada é tão estático que não se possa alterar. e às vezes basta um detalhe para clarear o escuro, amargar o doce, colorir o cinzento and so on...

e é a incerteza da inalteração que faz com que os medos e os desejos se confundam, fazendo com que cada segundo de cada minuto de cada hora seja um inédito com repercussões imprevisíveis.

a curiosidade torna-se natural, uma extensão da procura permanente da surpresa, que já não é de admirar que todos os dias haja uma partícula do meu mundo que se altere, que se desmonte em mil outras que transformam uma certeza numa novidade. faz parte da contradição, do frágil equilíbrio entre o pensar e o sentir, a simbiose imperfeita que é a realidade do meu imaginário.

e talvez seja por isso que não me admirei nada de ter chegado a casa a pensar em ti.

segunda-feira, março 07, 2005

e como...

...há assuntos que são demasiado pessoais para escrever sobre eles (até porque nem discernimento há para tentar) e como há outros que davam tantos posts mas que pura e simplesmente não valeria a pena perder tempo até porque eu já sabia, mas não custa tentar pois não?; e como o que me vai na cabeça não passa de emaranhados de palavras que são soltas mas que me aparecem em sonhos todas sobrepostas, numa sucessão horrível de desilusões e pressões e pedidos de ajuda do meu próprio subconsciente submerso em olhares que se confundem e vozes que pesam na cabeça; e como o meu dia-a-dia me sabe tão bem com excepção daqueles espasmos de solidão inexplicável quando chega o fim do dia e o cansaço pesa nos ombros e no pescoço e na cabeça e no coração e como eu sou capaz de me sentir tão desesperadamente culpada por saber que tenho tanta sorte e ao mesmo tempo sou capaz de me queixar tanto; e como eu ainda consigo ter força para tanto e tudo ao mesmo tempo e como me faz mal não ter hipótese de satisfazer os meus desejos quando quero porque eu preciso, e como...e como eu finjo que há certas coisas que não vejo ou que não me perturbam ou que não me baralham ou que não me interessam ou que não me preocupam, oh que magnífco panto que se encena por aqui, miserável comédia de enganos e ilusões; e como a vida é realmente tão simples mesmo que se tente complicá-la só porque sim e como às vezes é tão difícil lidar com a visão da vida toda à nossa frente.

terça-feira, março 01, 2005

olhar


não é muito, penso eu, se te pedir que olhes para mim com atenção, com cuidado, com olhos de quem vê e não de quem se limita a olhar.

se te pedir que me olhes nos olhos e que não os desvies, nunca, até que consigas ver bem para lá do que está, simplesmente, à vista. bem para lá do que deixo ver.
se te pedir que olhes para mim e que me observes, irracionalmente, incondicionalmente, até que um olhar se traduza em míriades de frases-canção.

se te pedir tudo isto e ainda que me deixes em paz, não será muito, acho eu.

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

procuro...


...um sentido, uma explicação, uma justificação que seja. para tudo. ou para nada. nem eu sei bem porquê, nem de onde veio esta absurda necessidade de concretizar o abstracto, de explicar o que não precisa de explicação, de explorar vazios e dissecar vontades. de desmembrar medos e tentar descortinar mapas de emoções. porquê?

se há no meu sorriso uma inclinação natural para o desigual, o imperfeito, o inesperado.

se o surpreendente me rejuvenesce, se o ilógico me atrai, se o pouco convencional me abraça e me dá tanto prazer...porquê contrariar uma natureza que só o é quando está verdadeira e intrínsecamente livre, quando não há atrito que a trave no seu voo (ou talvez embalo, não sei) sem rota, sem traço, sem torre que o controle? ou não é a própria torre que acompanha o voo, que se desprende e se deixa levar por mares de sóis e de risos e de tanta vida que, por parecer não ter nenhum sentido, o tem afinal, todo...

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

numa folha rasgada e amarelecida entre as páginas de um livro


se são dias esses restos de tempo
acumulados em que os deixas passar
os que deitaste em certas nódoas de vento
o que investiste para ninguém comprar

se são sorrisos esses esgares isolados
sobras de luzes que brilharam p'ra trás
foi por tentares que os deixaste ensombrados
não foi nunca por não seres capaz

se são amores essas nuvens esbatidas
em busca do que nunca ninguém te deu
gotas de sal do mar enfermas, roídas
nos longos gestos de quem nunca sofreu

desculpa se passei e se não parei mas sabes que eu sempre fui assim
desculpa se olhei para ti e se não te vi mas sabes que não é para mim.

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

ela.

de vez em quando lá tinha paciência e lá pegava em qualquer coisa para ler. porque ela sabia ler, claro. e sempre era uma desculpa para fingir que era "culta e interessante", na sua definição mesquinha de cultura e interesse. não conhecia outro mundo para além do seu e nem era vontade sua conhecer. aqueles best-sellers assim levezinhos eram o ideal para ela porque não a faziam pensar em demasia, coisa detestável! pensar deprimia-a, obrigava-a a encarar as suas limitações e acordava as inseguranças sedadas a tanto custo, no ginásio, em frente do espelho, na cama. contentava-se com acreditar que todos os homens que conhecia a queriam comer. às vezes também pensava que era bom que todas as mulheres quisessem ser como ela mas desiludia-se rapidamente. sabia que não era assim tão excepcional e também achava que em geral as mulheres eram muito mais díficeis de contentar do que os homens, pelos menos aqueles que a rodeavam. por isso gostava de as escandalizar, de provocá-las e tentar intimidá-las com a sua falsa arrogância. isso chegava. o seu maior problema eram as pessoas inteligentes. detestava-as porque as temia, porque sabia que nunca se impressionariam com as suas futilidades medíocres que eram como fogo-de-artifício de má-qualidade. a única coisa que gostava nos homens inteligentes era o gozo que davam quando os tentava conquistar. porque não se deixavam levar pelos olhares lascivos ou pelas frasezinhas brejeiras ditas naquela voz melíflua de operadora de sex-line que ela sabia tão bem recriar. porque sabia que para eles ela nunca passaria de um objecto e havia nessa despersonalização um fascínio que a inspirava a ser ainda mais forte, mais exposta, mais ela. para além do mais, os homens inteligentes não eram precisos para nada porque eram quase todos feios, e isso duplicava de uma só vez o estímulo e a desilusão. o que não suportava mesmo eram as mulheres "que pensavam". temia-as como a leões por saber perfeitamente que não havia disfarce nem artíficio que não se desconjuntasse com um olhar profundo, uma tirada espirituosa ou uma gargalhada sincera de uma daquelas criaturas que abominava. sentia-se sempre como um pequeno animalzinho assustado de cada vez que pensava que, algum dia, uma "delas" cruzar-se-ia no seu caminho. porque elas não precisavam de fingir e isso era injusto. porque elas eram perigosas e traiçoeiras e autênticas e infinitamente sedutoras e isso era absurdo. porque elas podiam não ter nada mas eram tudo e esse era o derradeiro golpe.

e houve uma noite em que acordou alagada em suor porque sonhou. sonhou com o dia em que não haveria creme nem operação nem mini-saia que a salvasse desse fatídico destino. a realidade tomou conta do seu subconsciente, sobrepôs-se aos sonhos infinitos de divinização e fê-la encontrar-se consigo própria: mas velha. estremeceu ao aperceber-se de que chegaria o dia em que ela deixaria obrigatoriamente de ser vista como desejável. tornar-se-ia dispensável como todos os velhos no seu pequeno mundo de cristal e chorou. chorou e prometeu suicidar-se no dia em que nenhum homem quisesse dormir com ela e o espelho se embaciasse com o seu olhar.

sexta-feira, fevereiro 18, 2005

draft-sombra

estou a dormir. profundamente, consegues ouvir a minha respiração no silêncio do quarto. olhas para mim, sentado no chão, as pernas cruzadas, como se estivesses a ouvir alguém que te diz qualquer coisa que há muito querias ouvir. mas eu não te digo nada. durmo. respiro. esboço um sorriso e enrosco-me mais um bocado. tu continuas a olhar, não consegues perceber se a tua cabeça está vazia ou se bloqueou entretanto. já sentes as pernas dormentes de estar sentado há tanto tempo, já toda a gente se foi embora. levantas-te sem saber o que fazer, decides tapar-me com uma manta velha, deixada ao abandono nas costas de uma cadeira. tapas-me, não porque aches que eu esteja com frio, mas porque já desististe de tentar dominar a vontade que tens de te aproximar de mim. continuo a dormir enquanto me cobres devagar, com todo o cuidado para não me acordares. não me queres acordar, queres aproveitar esta oportunidade de me teres ao teu lado, no teu espaço, sozinha. quem sabe quando vais voltar a ter-me assim? sinto-te e estremeço, a mudança de temperatura faz com que eu entreabra os olhos. vejo-te vagamente e volto a sorrir. estou tão bem, apetece-me dizer-te. mas o que sai é "deita-te comigo". volto a adormecer, não me apercebo do que se passa. tu obedeces-me mecanicamente, com uma calma que te surpreende, como se já soubesses o que te ia dizer. e de certa maneira já sabias. já me tinhas ouvido, em sonhos confusos que não consegues recordar. não agora. mexes-te lentamente, queres ter os teus movimentos controlados. há qualquer coisa de místico no momento que não pode, não deve, ser interrompido. enrolas-te em mim como se fosse a única coisa a fazer, como se o universo inteiro dependesse do nosso abraço. e eu sinto o teu abraço, não abro os olhos mas volto a sorrir. aninho-me, encaixo-me e tu abraças-me com força, envolves-me e sentes-me e há um instante em que tudo parece querer parar. volto a adormecer sem ter a certeza de em algum momento ter estado acordada. estou tão bem, dizes-me.

eu-angustiado

há alturas em que fraquejo, em que fecho os olhos e deixo de ser eu, em que morro por dentro aos bocadinhos, em que os meus olhos quase implodem do esforço que faço para não chorar, em que um qualquer vazio caprichoso me domina, em que a tensão é tanta que sufoca, em que o coração vibra num pizzicato infernal, em que estou verdadeira e definitivamente triste.

mas nunca, nunca nesta vida e por nada deste mundo ponho em causa o que sou, o que tenho, o que escolho.

domingo, fevereiro 13, 2005

"l'enfer" não são "les autres"

"os outros" são espelhos flutuantes da realidade, através deles tenho a percepção daquilo que realmente me define, do meu eu caracterizante que me é devolvido pelos que me conhecem e que juntam tudo o que veêm em mim num reflexo emocionalmente multidimensional.

se o espelho é realmente estático, e eu posso adulterá-lo e controlá-lo de forma a poder "ver" o que mais me convier, será que o eu espelhado nos outros poderá também ser influenciado pela minha própria capacidade de "ver o que quiser", num perfeito exercício de manipulação narcisística? não acredito. o principal defeito d'"os outros" como espelho é terem eles próprios o poder de distorcer a nossa imagem sem qualquer controlo, de denegrir ou elevar o reflexo que nos devolvem com a mesma simplicidade, tão humana. e, se tanto o espelho-vidro como o espelho-gente são, de uma só vez, tão fiáveis e tão falíveis, como usar os reflexos de que dispomos para encontrar o nosso verdadeiro eu?

encontrando o derradeiro espelho, o pior, o mais exacto, o mais assustador: o espelho-eu.

sexta-feira, fevereiro 11, 2005

e na rotina matinal...


...descobrir que há nos espelhos um encanto inexplicável de contornos místicos, de feiticeiro ancestral que nos obriga a comunicar com o nosso eu mais intrínseco e nos leva a explorar todas as nossas falhas interiores através da mera observação de uma imagem.

porque o meu espelho sou eu. um eu estético, um eu estático que apenas tem vida nos contornos limitados do enorme quadrado de espelho e que me mostra tudo o que (nem sempre) quero ver. é um eu que vive e respira e se admira e se repele com a intensidade das paixões narcísicas. porque o espelho não nos reflecte por inteiro, há sempre aquele bocado que falta. aquela totalidade. e se calhar o que me agrada no espelho é precisamente essa vacuidade, essa presença incompleta que me fita, agressiva e fielmente. um eu vazio, ou nem sempre. um eu que se pode transformar com uma mudança de olhar ou de expressão, um toque no cabelo, um risco nos olhos. um eu controlado a cada instante, observado em cada inclinação da cabeça, em cada movimento da mão. um eu suprimido, subjugado ao que não passam de reflexos da realidade. uma imagem e nada mais.

e no entanto, tantas vezes de olhos fixos nesse quadrado de sonhos infinitos, à espera talvez de, por entre os reflexos vazios, conseguir ver um bocadinho que fosse do outro eu, aquele cujos reflexos só aparecem nos olhos dos outros.

sexta-feira, fevereiro 04, 2005

eu e o meu pai - parte II

"eu acentuo as minhas preocupações, tu preocupas-te com os acentos."

quinta-feira, fevereiro 03, 2005

rabiscado

bocados de mim que se desprendem sem querer, alguns solto-os eu que já estou farta de os guardar. materializam-se sozinhos, através de tudo o que é meu e passam de simples pensamentos, emoções e gostos peculiares a factos. passam a ser autónomos, nunca independentes por subjugados à minha vontade e ao meu desejo, que faço deles o que bem me apetecer. são franjas de mim, que abanam conforme os ventos, que as levam ou trazem com a naturalidade de quem tem vindo sempre a fazer as mesmas coisas, sem tirar nem pôr, ao longo de anos que nenhum calendário conseguirá um dia quantificar.

não quero o meu tempo agrilhoado, formalizado, como não me quero perder em fatias solitárias de pequenas eus que já foram ou poderiam ter sido ou ainda virão a ser.

e sim, claro, tenho sempre uma vida inteira pela frente para me divertir a baralhar todos estes bocados como se fossem peças de um qualquer puzzle distorcido e vagamente maquiavélico, remexê-los e dá-los de mão beijada a quem quer que os queira para si, ou que simplesmente aconteça "estar no sítio certo à hora certa", segundo o princípio matemático da coincidência. e apesar de não ser a vida inteira que me faz dançar neste enleio de rabiscos, e sim a vida imediata que me abraça por trás e pela frente e de todas as maneiras possíveis, há uma satisfação muito minha, muito confortavelmente desprovida de qualquer racionalidade, na antecipação de que um dia todos estes bocados serão devolvidos ao remetente e todos os mundos que em mim patinam resplandecerão de sorrisos e harmonia.

não são inspirações, nem hesitações, nem buscas por quimeras imaginárias e derradeiramente impossíveis que me ponham ainda mais longe do meu destino, seja ele qual for (e qual venha a ser):

são nuvens cor-de-rosa que me embalam.

segunda-feira, janeiro 31, 2005

o frio

de vez em quando o frio sabe bem. quando deixamos de nos roer por dentro com saudades de um calor que nos venha encher de risos e refrescos, conseguimos reconhecer que há uma beleza pura no frio. uma beleza que inspira, que serena, que ilumina com a luz subversiva com que o frio banha tudo aquilo em que toca, em que se reflecte, em que se projecta.

é uma beleza fria.

retesa os músculos da cara, mareja-me os olhos de lágrimas bem-dispostas e transparentes como o fio de água (fria, como convém) que deixo escorregar da torneira, de manhã, quando me olho ao espelho: é o frio da água, do espelho, do aço das torneiras, do branco dos lavatórios. é um frio estético que me desperta para depois se transformar num frio físico, claro, palpável...aquele que está nos passeios, na meia-luz do anoitecer, pendurado nas árvores dos jardins, metódico, persistente e nostálgico, descansando permanentemente no cabedal dos casacos, no pêlo quentinho das golas, na lã grossa das luvas e dos cachecóis. sabe bem, o frio.

o meu frio.

terça-feira, janeiro 25, 2005

mar

às vezes parece que estou perdida num imenso mar de futilidades, nadando sem conseguir sair do mesmo sítio, à espera de um qualquer barquinho perdido, como eu, que me leve de volta para casa. é que este sol até pode ser brilhante e o céu azul...e a água é sem dúvida das mais límpidas e convidativas que já vi. só que basta aperfeiçoar um bocadinho o olhar, prestar atenção, e vê-se perfeitamente que lá no fundo (que nem é assim muito fundo) este oceano de idílio não passa de um pântano, dos mais lodosos, movediços e repugnantes.

filosofia de almofada

a independência é uma mentira enorme e muito mal disfarçada.

sexta-feira, janeiro 21, 2005

amor à primeira vista?

há coisas que me fazem não acreditar minimamente no amor à primeira vista. paixões à primeira vista, isso sim, há por aí aos milhões. paixões avassaladoras só porque sim, só porque se olhou para alguém com outros olhos, com olhos de quem deseja, de quem quer aproveitar antes que se esgote. porque a paixão esgota. é como o vodka-groselha: é doce, é colorido, cativa-nos ao primeiro copo. mas enjoa. tem um prazo. ao fim de um tempo já não o podemos ver. e ao fim de mais um tempo já nem nos lembramos que existe. claro que é bom, aliás óptimo. mas é efémero, esbate-se. como a paixão. o amor não pode por definição ser efémero. o amor é mais complicado, requer uma habituação, um determinado estado de espírito, uma certa maturidade. o verdadeiro amor nunca começa como se espera que comece. tem sempre uma história qualquer por detrás. um período de adaptação. uma vivência. é complexo, quente, consolador. já passou por muito. o amor é a paixão sem a histeria. conquista-nos à força de muita insistência, de muito convívio. e por muito que uma paixoneta nos possa cativar de vez em quando, não há nada como um bom amor de muitos anos: um single malt com uma pedra de gelo, se faz favor.

quarta-feira, janeiro 19, 2005

eu e o meu pai

"-acho que no fundo sempre tive alma de artista (...) gosto de pôr as pessoas a pensar, de desconcertá-las...
-eu tenho alma de matemática.
(longa pausa silenciosa)
-isso não é desconcertar, isso é anarquia."

domingo, janeiro 16, 2005

da preguiça e outros pormenores

se há coisa de que toda a gente precisa é da preguiça, preguiça boa, daquela que prende uma pessoa ao sofá e não a deixa sair por nada, que a inunda de sossego e boa disposição como se de um sol de junho se tratasse. para os efeitos este sol de dezembro não é exactamente comparável mas adiantemo-nos que eu tenho de começar a perder este hábito de me demorar demasiado em coisas que não interessam. ou então não, até porque as coisas que não interessam são sempre as mais interessantes. avancemos.

os dias de preguiça são sempre produtivos, não duvidem os mais cépticos: a preguiça é amiga da ponderação, da calma, da placidez...eu arrisco até da paz. e nestas alturas em que o mundo está tão confuso, tão nervoso, tão tristonho um bocadinho de paz (e de preguiça) é sempre bem-vindo. é assim como aquela cara sorridente que aparece sem avisar no meio da multidão, como o ananás bem doce no fim do almoço, como a música que se ouve pela primeira vez e de que se gosta logo. é preguiça, é boa e mais não há que se diga.

e depois por meio da preguiça há aquele filme que se vê, mas não se vê. porque não se está a prestar atenção, não se está a devorar o argumento nem a admirar a cinematografia nem a filosofar sobre a ideia que dá origem a esse filme. mas vê-se. e guardam-se imagens na cabeça como se fossem fotografias ou, melhor ainda, momentos que até poderiam ter sido realidade (se não estivessem retratados num ecrã, obviamente). como o ar terrivelmente intelectual-sexy da personagem principal, o cigarro pendendo dos dedos, o decote já demodeé, o corte garçonne, os brincos excessivamente compridos e o bâton vermelho-vivo...mas o que a torna diferente, o que a torna especial, o que faz com que o homem não a consiga tirar da cabeça por mais que tente não são os enfeites, não. é o olhar malandro. o sorriso decidido e alegre. o tom desafiador com que pinta as histórias que conta, as ideias que tem, o que lhe apetece dizer. quase que acredito que ela está mesmo ali, com ele ao lado, a galeria de arte tão incrivelmente familiar...apesar de nunca ter estado em nenhuma parecida. acho que deve ser aquilo a que chamam a "magia do cinema". capaz.

e depois há as palminhas, que coisa deliciosa, as palminhas! ela bate palmas e conquista-nos a todos naquela minúscula janelinha de tempo em que fixa as continhas brilhantes nos nossos sorrisos idiotas (como aliás se espera que sejam).

e depois há aqueles momentos que vão da descontracção absoluta (gosto sempre tanto de ficar no silêncio, sabe tão bem, parece veludo nos ouvidos) às gargalhadas incontroláveis a que não conseguimos fugir. porque aqui toda a gente já sabe que nós as duas em dia-sim somos um terramoto, não paramos quietas, prendemos a razão e todas as suas amigas em gaiolinhas de metal e deixamo-nos levar pela loucura das cores e de tudo quanto for desprovido de qual tipo de lógica e compostura, somos tontas e gostamos.

e depois há tanta coisa.

quinta-feira, janeiro 13, 2005

as boas pessoas...

...são sempre boas pessoas. mesmo quando são más.

as outras não adianta sequer tentarem.

segunda-feira, janeiro 10, 2005

da minha janela

da minha janela vejo o céu.
da minha janela vejo as cores da cidade.
da minha janela perco-me em paletas de brilhos infindáveis que se movimentam em sequências cheias de contrastes mecânicos, opacos que se alternam em batidas contínuas e suaves.

da minha janela agarro o sol. com os olhos fechados.

da minha janela vejo abraços que se complementam e se confundem com os olhares concentrados dos que passam apressados e com o vagar dos que se limitam a devanear, sorvendo cada detalhe da caminhada com a avidez de quem se encontra pela primeira vez.

da minha janela vejo-me a percorrer os caminhos que tenho percorrido desde sempre. vejo as nuvens abertas do tempo que passou, vejo caras e cheiros e sabores e buganvílias cor-de-rosa que já deixaram de abrir há muitos anos.
da minha janela vejo alegrias e tristezas passeando de mãos dadas.

da minha janela vejo outras janelas.

o que será que se vê
daquela janela

?

terça-feira, janeiro 04, 2005

na distância da noite, recomeçar...

desligando botões, desfazendo correntes, desatando nós, fechando portas e portões e gavetinhas.

abrindo todas as janelas.

sentindo a corrente de ar passar junto ao pescoço, colada como um sopro, fresca como o primeiro sol da primavera. deslizando pelos cabelos até às costas, arrastando braços e pernas, imóveis no enleio confortável do ar, frio. inebriante.

sonhando com paisagens distantes, cores nunca antes vistas em nenhuma paleta, odores intensos e reconfortantes. sóis que nunca perdem o brilho, luas que aquecem e estrelas infinitas que se reflectem em sorrisos de amêndoa e laranja amarga.

travos que aquecem a alma.