quinta-feira, fevereiro 03, 2005

rabiscado

bocados de mim que se desprendem sem querer, alguns solto-os eu que já estou farta de os guardar. materializam-se sozinhos, através de tudo o que é meu e passam de simples pensamentos, emoções e gostos peculiares a factos. passam a ser autónomos, nunca independentes por subjugados à minha vontade e ao meu desejo, que faço deles o que bem me apetecer. são franjas de mim, que abanam conforme os ventos, que as levam ou trazem com a naturalidade de quem tem vindo sempre a fazer as mesmas coisas, sem tirar nem pôr, ao longo de anos que nenhum calendário conseguirá um dia quantificar.

não quero o meu tempo agrilhoado, formalizado, como não me quero perder em fatias solitárias de pequenas eus que já foram ou poderiam ter sido ou ainda virão a ser.

e sim, claro, tenho sempre uma vida inteira pela frente para me divertir a baralhar todos estes bocados como se fossem peças de um qualquer puzzle distorcido e vagamente maquiavélico, remexê-los e dá-los de mão beijada a quem quer que os queira para si, ou que simplesmente aconteça "estar no sítio certo à hora certa", segundo o princípio matemático da coincidência. e apesar de não ser a vida inteira que me faz dançar neste enleio de rabiscos, e sim a vida imediata que me abraça por trás e pela frente e de todas as maneiras possíveis, há uma satisfação muito minha, muito confortavelmente desprovida de qualquer racionalidade, na antecipação de que um dia todos estes bocados serão devolvidos ao remetente e todos os mundos que em mim patinam resplandecerão de sorrisos e harmonia.

não são inspirações, nem hesitações, nem buscas por quimeras imaginárias e derradeiramente impossíveis que me ponham ainda mais longe do meu destino, seja ele qual for (e qual venha a ser):

são nuvens cor-de-rosa que me embalam.