sexta-feira, fevereiro 25, 2005

procuro...


...um sentido, uma explicação, uma justificação que seja. para tudo. ou para nada. nem eu sei bem porquê, nem de onde veio esta absurda necessidade de concretizar o abstracto, de explicar o que não precisa de explicação, de explorar vazios e dissecar vontades. de desmembrar medos e tentar descortinar mapas de emoções. porquê?

se há no meu sorriso uma inclinação natural para o desigual, o imperfeito, o inesperado.

se o surpreendente me rejuvenesce, se o ilógico me atrai, se o pouco convencional me abraça e me dá tanto prazer...porquê contrariar uma natureza que só o é quando está verdadeira e intrínsecamente livre, quando não há atrito que a trave no seu voo (ou talvez embalo, não sei) sem rota, sem traço, sem torre que o controle? ou não é a própria torre que acompanha o voo, que se desprende e se deixa levar por mares de sóis e de risos e de tanta vida que, por parecer não ter nenhum sentido, o tem afinal, todo...

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

numa folha rasgada e amarelecida entre as páginas de um livro


se são dias esses restos de tempo
acumulados em que os deixas passar
os que deitaste em certas nódoas de vento
o que investiste para ninguém comprar

se são sorrisos esses esgares isolados
sobras de luzes que brilharam p'ra trás
foi por tentares que os deixaste ensombrados
não foi nunca por não seres capaz

se são amores essas nuvens esbatidas
em busca do que nunca ninguém te deu
gotas de sal do mar enfermas, roídas
nos longos gestos de quem nunca sofreu

desculpa se passei e se não parei mas sabes que eu sempre fui assim
desculpa se olhei para ti e se não te vi mas sabes que não é para mim.

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

ela.

de vez em quando lá tinha paciência e lá pegava em qualquer coisa para ler. porque ela sabia ler, claro. e sempre era uma desculpa para fingir que era "culta e interessante", na sua definição mesquinha de cultura e interesse. não conhecia outro mundo para além do seu e nem era vontade sua conhecer. aqueles best-sellers assim levezinhos eram o ideal para ela porque não a faziam pensar em demasia, coisa detestável! pensar deprimia-a, obrigava-a a encarar as suas limitações e acordava as inseguranças sedadas a tanto custo, no ginásio, em frente do espelho, na cama. contentava-se com acreditar que todos os homens que conhecia a queriam comer. às vezes também pensava que era bom que todas as mulheres quisessem ser como ela mas desiludia-se rapidamente. sabia que não era assim tão excepcional e também achava que em geral as mulheres eram muito mais díficeis de contentar do que os homens, pelos menos aqueles que a rodeavam. por isso gostava de as escandalizar, de provocá-las e tentar intimidá-las com a sua falsa arrogância. isso chegava. o seu maior problema eram as pessoas inteligentes. detestava-as porque as temia, porque sabia que nunca se impressionariam com as suas futilidades medíocres que eram como fogo-de-artifício de má-qualidade. a única coisa que gostava nos homens inteligentes era o gozo que davam quando os tentava conquistar. porque não se deixavam levar pelos olhares lascivos ou pelas frasezinhas brejeiras ditas naquela voz melíflua de operadora de sex-line que ela sabia tão bem recriar. porque sabia que para eles ela nunca passaria de um objecto e havia nessa despersonalização um fascínio que a inspirava a ser ainda mais forte, mais exposta, mais ela. para além do mais, os homens inteligentes não eram precisos para nada porque eram quase todos feios, e isso duplicava de uma só vez o estímulo e a desilusão. o que não suportava mesmo eram as mulheres "que pensavam". temia-as como a leões por saber perfeitamente que não havia disfarce nem artíficio que não se desconjuntasse com um olhar profundo, uma tirada espirituosa ou uma gargalhada sincera de uma daquelas criaturas que abominava. sentia-se sempre como um pequeno animalzinho assustado de cada vez que pensava que, algum dia, uma "delas" cruzar-se-ia no seu caminho. porque elas não precisavam de fingir e isso era injusto. porque elas eram perigosas e traiçoeiras e autênticas e infinitamente sedutoras e isso era absurdo. porque elas podiam não ter nada mas eram tudo e esse era o derradeiro golpe.

e houve uma noite em que acordou alagada em suor porque sonhou. sonhou com o dia em que não haveria creme nem operação nem mini-saia que a salvasse desse fatídico destino. a realidade tomou conta do seu subconsciente, sobrepôs-se aos sonhos infinitos de divinização e fê-la encontrar-se consigo própria: mas velha. estremeceu ao aperceber-se de que chegaria o dia em que ela deixaria obrigatoriamente de ser vista como desejável. tornar-se-ia dispensável como todos os velhos no seu pequeno mundo de cristal e chorou. chorou e prometeu suicidar-se no dia em que nenhum homem quisesse dormir com ela e o espelho se embaciasse com o seu olhar.

sexta-feira, fevereiro 18, 2005

draft-sombra

estou a dormir. profundamente, consegues ouvir a minha respiração no silêncio do quarto. olhas para mim, sentado no chão, as pernas cruzadas, como se estivesses a ouvir alguém que te diz qualquer coisa que há muito querias ouvir. mas eu não te digo nada. durmo. respiro. esboço um sorriso e enrosco-me mais um bocado. tu continuas a olhar, não consegues perceber se a tua cabeça está vazia ou se bloqueou entretanto. já sentes as pernas dormentes de estar sentado há tanto tempo, já toda a gente se foi embora. levantas-te sem saber o que fazer, decides tapar-me com uma manta velha, deixada ao abandono nas costas de uma cadeira. tapas-me, não porque aches que eu esteja com frio, mas porque já desististe de tentar dominar a vontade que tens de te aproximar de mim. continuo a dormir enquanto me cobres devagar, com todo o cuidado para não me acordares. não me queres acordar, queres aproveitar esta oportunidade de me teres ao teu lado, no teu espaço, sozinha. quem sabe quando vais voltar a ter-me assim? sinto-te e estremeço, a mudança de temperatura faz com que eu entreabra os olhos. vejo-te vagamente e volto a sorrir. estou tão bem, apetece-me dizer-te. mas o que sai é "deita-te comigo". volto a adormecer, não me apercebo do que se passa. tu obedeces-me mecanicamente, com uma calma que te surpreende, como se já soubesses o que te ia dizer. e de certa maneira já sabias. já me tinhas ouvido, em sonhos confusos que não consegues recordar. não agora. mexes-te lentamente, queres ter os teus movimentos controlados. há qualquer coisa de místico no momento que não pode, não deve, ser interrompido. enrolas-te em mim como se fosse a única coisa a fazer, como se o universo inteiro dependesse do nosso abraço. e eu sinto o teu abraço, não abro os olhos mas volto a sorrir. aninho-me, encaixo-me e tu abraças-me com força, envolves-me e sentes-me e há um instante em que tudo parece querer parar. volto a adormecer sem ter a certeza de em algum momento ter estado acordada. estou tão bem, dizes-me.

eu-angustiado

há alturas em que fraquejo, em que fecho os olhos e deixo de ser eu, em que morro por dentro aos bocadinhos, em que os meus olhos quase implodem do esforço que faço para não chorar, em que um qualquer vazio caprichoso me domina, em que a tensão é tanta que sufoca, em que o coração vibra num pizzicato infernal, em que estou verdadeira e definitivamente triste.

mas nunca, nunca nesta vida e por nada deste mundo ponho em causa o que sou, o que tenho, o que escolho.

domingo, fevereiro 13, 2005

"l'enfer" não são "les autres"

"os outros" são espelhos flutuantes da realidade, através deles tenho a percepção daquilo que realmente me define, do meu eu caracterizante que me é devolvido pelos que me conhecem e que juntam tudo o que veêm em mim num reflexo emocionalmente multidimensional.

se o espelho é realmente estático, e eu posso adulterá-lo e controlá-lo de forma a poder "ver" o que mais me convier, será que o eu espelhado nos outros poderá também ser influenciado pela minha própria capacidade de "ver o que quiser", num perfeito exercício de manipulação narcisística? não acredito. o principal defeito d'"os outros" como espelho é terem eles próprios o poder de distorcer a nossa imagem sem qualquer controlo, de denegrir ou elevar o reflexo que nos devolvem com a mesma simplicidade, tão humana. e, se tanto o espelho-vidro como o espelho-gente são, de uma só vez, tão fiáveis e tão falíveis, como usar os reflexos de que dispomos para encontrar o nosso verdadeiro eu?

encontrando o derradeiro espelho, o pior, o mais exacto, o mais assustador: o espelho-eu.

sexta-feira, fevereiro 11, 2005

e na rotina matinal...


...descobrir que há nos espelhos um encanto inexplicável de contornos místicos, de feiticeiro ancestral que nos obriga a comunicar com o nosso eu mais intrínseco e nos leva a explorar todas as nossas falhas interiores através da mera observação de uma imagem.

porque o meu espelho sou eu. um eu estético, um eu estático que apenas tem vida nos contornos limitados do enorme quadrado de espelho e que me mostra tudo o que (nem sempre) quero ver. é um eu que vive e respira e se admira e se repele com a intensidade das paixões narcísicas. porque o espelho não nos reflecte por inteiro, há sempre aquele bocado que falta. aquela totalidade. e se calhar o que me agrada no espelho é precisamente essa vacuidade, essa presença incompleta que me fita, agressiva e fielmente. um eu vazio, ou nem sempre. um eu que se pode transformar com uma mudança de olhar ou de expressão, um toque no cabelo, um risco nos olhos. um eu controlado a cada instante, observado em cada inclinação da cabeça, em cada movimento da mão. um eu suprimido, subjugado ao que não passam de reflexos da realidade. uma imagem e nada mais.

e no entanto, tantas vezes de olhos fixos nesse quadrado de sonhos infinitos, à espera talvez de, por entre os reflexos vazios, conseguir ver um bocadinho que fosse do outro eu, aquele cujos reflexos só aparecem nos olhos dos outros.

sexta-feira, fevereiro 04, 2005

eu e o meu pai - parte II

"eu acentuo as minhas preocupações, tu preocupas-te com os acentos."

quinta-feira, fevereiro 03, 2005

rabiscado

bocados de mim que se desprendem sem querer, alguns solto-os eu que já estou farta de os guardar. materializam-se sozinhos, através de tudo o que é meu e passam de simples pensamentos, emoções e gostos peculiares a factos. passam a ser autónomos, nunca independentes por subjugados à minha vontade e ao meu desejo, que faço deles o que bem me apetecer. são franjas de mim, que abanam conforme os ventos, que as levam ou trazem com a naturalidade de quem tem vindo sempre a fazer as mesmas coisas, sem tirar nem pôr, ao longo de anos que nenhum calendário conseguirá um dia quantificar.

não quero o meu tempo agrilhoado, formalizado, como não me quero perder em fatias solitárias de pequenas eus que já foram ou poderiam ter sido ou ainda virão a ser.

e sim, claro, tenho sempre uma vida inteira pela frente para me divertir a baralhar todos estes bocados como se fossem peças de um qualquer puzzle distorcido e vagamente maquiavélico, remexê-los e dá-los de mão beijada a quem quer que os queira para si, ou que simplesmente aconteça "estar no sítio certo à hora certa", segundo o princípio matemático da coincidência. e apesar de não ser a vida inteira que me faz dançar neste enleio de rabiscos, e sim a vida imediata que me abraça por trás e pela frente e de todas as maneiras possíveis, há uma satisfação muito minha, muito confortavelmente desprovida de qualquer racionalidade, na antecipação de que um dia todos estes bocados serão devolvidos ao remetente e todos os mundos que em mim patinam resplandecerão de sorrisos e harmonia.

não são inspirações, nem hesitações, nem buscas por quimeras imaginárias e derradeiramente impossíveis que me ponham ainda mais longe do meu destino, seja ele qual for (e qual venha a ser):

são nuvens cor-de-rosa que me embalam.