domingo, maio 03, 2009

I.

ela sentiu de repente um pulsar intenso, como se alguém lhe tivesse desligado o interruptor sem avisar. caiu desamparada e de costas num balde de gelo, despertou os sentidos, abriu os olhos e fugiu. não olhou para trás, nunca olha, deixa sempre isso para depois. para quando está tudo quieto e o tempo pára nas mãos dela. sorriu na fuga, e deixou cair uma lágrima solitária quando sentiu o sol na pele, como se fosse um raio de fogo a amolecer gentilmente a carapaça de pedra dura, suja e gasta pelo correr dos dias. fechou os olhos e lembrou-se de quando era. sorriu uma outra vez e sentiu o impulso, a corrente electrizante que lhe percorreu as veias e lhe deu uma vontade súbita de gritar até partir as cordas vocais. achou que os pulmões encolhiam e inspirou fundo, fundo como se quisesse engolir todo o ar do mundo. e abriu os olhos com vontade de ver para lá de tudo, de aprender novos quereres que não a fizessem recordar o que já tinha aprendido uma e outra vez. sentiu vontade de ser atirada ao ar como se fosse um bebé, por um par de braços que lhe dessem coragem e que a fizessem querer crescer e sorrir. deu a mão a alguém invisível e começou a correr. às vezes corria só porque assim conseguia ouvir o coração na cabeça e sentir o suor a escorregar-lhe pelo pescoço até aos ombros, e a cair como gotas de chuva no passeio. correu até perder o fôlego e deixou-se deslizar ofegante para um banco de jardim. e tinha o coração na cabeça, e nas mãos e na boca e no peito. e sorriu uma outra vez.