segunda-feira, fevereiro 21, 2005

ela.

de vez em quando lá tinha paciência e lá pegava em qualquer coisa para ler. porque ela sabia ler, claro. e sempre era uma desculpa para fingir que era "culta e interessante", na sua definição mesquinha de cultura e interesse. não conhecia outro mundo para além do seu e nem era vontade sua conhecer. aqueles best-sellers assim levezinhos eram o ideal para ela porque não a faziam pensar em demasia, coisa detestável! pensar deprimia-a, obrigava-a a encarar as suas limitações e acordava as inseguranças sedadas a tanto custo, no ginásio, em frente do espelho, na cama. contentava-se com acreditar que todos os homens que conhecia a queriam comer. às vezes também pensava que era bom que todas as mulheres quisessem ser como ela mas desiludia-se rapidamente. sabia que não era assim tão excepcional e também achava que em geral as mulheres eram muito mais díficeis de contentar do que os homens, pelos menos aqueles que a rodeavam. por isso gostava de as escandalizar, de provocá-las e tentar intimidá-las com a sua falsa arrogância. isso chegava. o seu maior problema eram as pessoas inteligentes. detestava-as porque as temia, porque sabia que nunca se impressionariam com as suas futilidades medíocres que eram como fogo-de-artifício de má-qualidade. a única coisa que gostava nos homens inteligentes era o gozo que davam quando os tentava conquistar. porque não se deixavam levar pelos olhares lascivos ou pelas frasezinhas brejeiras ditas naquela voz melíflua de operadora de sex-line que ela sabia tão bem recriar. porque sabia que para eles ela nunca passaria de um objecto e havia nessa despersonalização um fascínio que a inspirava a ser ainda mais forte, mais exposta, mais ela. para além do mais, os homens inteligentes não eram precisos para nada porque eram quase todos feios, e isso duplicava de uma só vez o estímulo e a desilusão. o que não suportava mesmo eram as mulheres "que pensavam". temia-as como a leões por saber perfeitamente que não havia disfarce nem artíficio que não se desconjuntasse com um olhar profundo, uma tirada espirituosa ou uma gargalhada sincera de uma daquelas criaturas que abominava. sentia-se sempre como um pequeno animalzinho assustado de cada vez que pensava que, algum dia, uma "delas" cruzar-se-ia no seu caminho. porque elas não precisavam de fingir e isso era injusto. porque elas eram perigosas e traiçoeiras e autênticas e infinitamente sedutoras e isso era absurdo. porque elas podiam não ter nada mas eram tudo e esse era o derradeiro golpe.

e houve uma noite em que acordou alagada em suor porque sonhou. sonhou com o dia em que não haveria creme nem operação nem mini-saia que a salvasse desse fatídico destino. a realidade tomou conta do seu subconsciente, sobrepôs-se aos sonhos infinitos de divinização e fê-la encontrar-se consigo própria: mas velha. estremeceu ao aperceber-se de que chegaria o dia em que ela deixaria obrigatoriamente de ser vista como desejável. tornar-se-ia dispensável como todos os velhos no seu pequeno mundo de cristal e chorou. chorou e prometeu suicidar-se no dia em que nenhum homem quisesse dormir com ela e o espelho se embaciasse com o seu olhar.