terça-feira, abril 19, 2005

cegava

embrulhava-se em papéis de rebuçados de sabores vários e sabia que nas alturas em que não pensava era genuinamente feliz. não que não o fosse no resto do tempo, era tão fácil simplificar como complicar. e se a vida era uma sucessão de luas tão cíclicamente iguais, o melhor era mesmo agarrar os sóis que se lhes interpunham. brilhos diferentes, gestos iguais. e naquela sequência do despertar-adormecer havia sempre a incerteza dormente do amanhã; quem lhe garantia que o sol não explodiria no dia seguinte, deixando a escuridão e as migalhas flutuantes do que sobrasse dos calhaus onde assentava a vida ou a ausência dela? pedras e pouco mais. fogos-fátuos, águas plácidas, iridescências, vapores e fumos vários. reduzido a nada? ou seriam já o nada que teimavam em negar? regozijava-se com as névoas tímidas e envolventes dos cigarros que não fumava, imaginava-os pousados sobre os cinzeiros, lânguidos e deliciosamente mortais, ou não era assim o prazer do vício? como todos os vícios que se lhe entranhavam em cada minúsculo bocadinho de pele e a relaxavam, esfusiante e desgarrada como grãos de areia enrolados naquelas ondas frias e fortes de setembro. e às vezes fechava os olhos e sentia os gestos, os cheiros, os sabores que a elevavam e a desfaziam em féretros de luz rodopiantes. quase que cegava do êxtase, da recordação, da antecipação de passados, presentes e futuros baralhados em novelos que não queria desfazer. e não pensava e isso era tão absurdo e tão deleitante. descansava, no meio da agitação e do ardor e do querer. e sentia-se tão violentamente bem. já nem distinguia com exactidão os sonhos das realidades, das vontades, das possibilidades. e sabia bem que tudo não passava de uma enorme e avassaladora virtude, por muito que a imoralizassem. cegava. ah, mas os gestos, os cheiros, os sabores: esses reconhecê-los-ia em qualquer parte do mundo.