segunda-feira, abril 26, 2010

VI.

sentia-se invadida por mil tempestades e tinha vontade de recorrer a expletivos de várias naturezas para dizer ao mundo que aquilo que sentia era intenso demais e não tinha nela a força nem o desejo de se refrear, de se controlar de que maneira fosse. desconcentrava-se de tudo o que estava à volta e dava por ela envolta numa névoa singular e difusa e queria muito exteriorizar esse sentimento, dar-lhe uma forma corpórea. assumi-lo de uma vez e com ele atingir um estado de libertação que a afastasse de tudo o que era mundano e a fazia acinzentar-se por dentro. e nestas alturas sim, libertava-se e expiava todos os pecados e conseguia esquivar-se à banalidade que a perseguia e torturava tão mais frequentemente do que desejava. desmanchava-se em felicidade com cada arrepio que sentia ao imaginar o que seria, como seria e o que na verdade sentiria se as amarras se soltassem de rompante e não fosse toda ela um ser condicionado por tantos e tão flagrantes impedimentos que não lhe permitiam o usufruto daquele prazer proibido que a seduzia tantas vezes, tão subtil e tão demasiado. deleitava-se com aquele instinto, puro e selvagem no seu âmago, e queria por tudo ser dominada por ele e pela mais óbvia ciência que sabia ser o motor daquela vontade tão poderosa e tão absurda que a fazia esquecer-se de tudo por longos períodos de cada vez e deixar-se entregue a uma sensação, a um choque de partículas tão intenso que quase esperava que o universo se movimentasse subitamente e fizesse desaparecer o tudo e o nada. fechava os olhos e via os outros olhos, os que se cruzavam com os seus em trocas furtivas que nunca revelavam a sua intencionalidade e a deixavam num estado de perpétua adivinhação, como uma dormência que sabia ser exclusiva e incomensurável, como se diz em linguagem geométrica de duas grandezas que não têm uma medida em comum.


e sorria e admirava-se quando de repente percebia que era tudo uma questão de pele.

quinta-feira, abril 01, 2010

entrelaçamento (V.)

sentiu-se vazia como sempre se sentia nas alturas em que tinha de dizer adeus. era desagradável aquela sensação de abandono, de fim, de histórias que não se repetiam nem se voltavam a encontrar na sobrevivência que era a sucessão dos dias. às vezes era mais fácil, dependia das situações, dos ventos dominantes e principalmente de quem recebia esse adeus, já de sua natureza tão pesado na semântica. este era um adeus difícil e denso, dos que se arrastavam e que a seguiam para onde quer que fosse depois, lento e ligeiramente incómodo por ser tão lentamente sufocante. não queria só dizer adeus, queria dizer uma coisa bonita, algo que cobrisse o momento de uma camada de leveza poética e eloquente, engraçada até. mas não conseguia dizer nada porque estava cinzenta e magoada e não queria dizer adeus. não queria acatar a injustiça por saber que era tão real, por não querer acreditar que estava acorrentada ao sistema que sempre tinha sido alvo do seu escárnio e do seu desprezo mais profundo, por detestar todos os adeus. e principalmente porque a cada adeus gerado por um largar de amarras, não conseguia deixar de sentir mais uma grilheta dourada a fechar-se nos seus pulsos, transformados em alimento de um polvo nauseante com tentáculos que se colavam e lhe manchavam a pele. costumava sentir nestas alturas um ímpeto súbito de saltar fora, de virar as costas e sair a correr, num impulso predatório em busca da liberdade e da paz que almejava todos os dias, numa ânsia descomedida de fugir. mas não, este adeus era cerrado e todo ele cheio de um negrume que lhe desmontava o coração em pequenas e melancólicas peças desprovidas dessa virtude teologal designada esperança. queria revogar aquele adeus, retirar-lhe qualquer validade e torná-lo nulo, porque assim saberia que ele não era real nem efectivo e que assim poderia protelar o vazio que se apoderava dela e a alimentava à força com as lágrimas que era obrigada a aprisionar. 

no fim do dia reuniu as palavras e as lágrimas e a escuridão e metamorfoseou-as num abraço que quis que durasse para sempre e guardou esse instante na lembrança esperando que o entrelaçamento fosse suficiente para manifestar o que não conseguia dizer

e sentiu saudades.