quarta-feira, junho 15, 2005

o apelo (post calcutá)*


(sebastião salgado, "gourma-rharous", mali, 1985)

é o sonho de criança, forte e recorrente, que ganha vida de cada vez que eles aparecem, no colorido de um telejornal ou no canto impessoal da estação de metro, de mãos estendidas. os infinitos "eles" que constroem a nossa civilização (des)equilibrada em torres frágeis de cartas imensas em que os trunfos não são de maneira nenhuma suficientes para se fazer um jogo minimamente decente. são tantos, estão em todo o lado, devidamente desenquadrados da cultura do plafond de crédito, das férias anuais seja onde for e das palmadinhas nas costas - a cultura dos olhos bem fechados. a subsistência, meus amigos, torna-se uma questão de pertinência material precisamente porque há desigualdade. em lugares onde a vida humana tem um valor irrisório, onde estamos mais próximos da nossa origem animal, onde qualquer pre-concepção ocidental é desmanchada num instante. não falo por experiência. tenho pena. imagino-me cara a cara com a antítese de tudo o que sempre conheci - e a tentar descobrir as semelhanças, já que as diferenças estão à vista de todos. diz hobbes que os actos verdadeiramente altruístas nunca deixam de ser egoístas, na impossibilidade de negar a natureza egocêntrica do homem. tem razão. não me tira a vontade de poder fazer qualquer coisa, o derradeiro sacrifício, a possibilidade de ser uma abstracção de mim mesma para benefício de perfeitos desconhecidos. pior. desconhecidos com carências. e ver com os meus olhos, para poder acreditar com mais força, que o que mais falta faz ao homem é o espírito. ver nos olhos de um doente, de um refugiado, de um simples desfavorecido, os meus. e perceber que não há em mim nada de extraordinário - como todas as outras, uma pessoa. [se é que ainda alguém sabe o que isso é]

*aventurando-me corajosamente no campo traiçoeiro da "humanidade" - sem pretensões de sacristã ou de filantropa, pretendendo apenas enfatizar um ponto de vista que é universalmente meu e me manter bem ligada à realidade que é a de um mundo que se estende muito para além de bairros e avenidas. gostava de ter força, isso gostava. contento-me com a humildade de quem continua a querer aprender o que é ser humano.