terça-feira, janeiro 26, 2010

II.

passava por ela e olhava para baixo. ou para o lado. e sempre que, num infortúnio, não se desviava, cerrava a expressão com toda a força, como que a trancar-se do mundo. afligia-se porque não sabia o que era que aquela mulher trazia dentro dela, aquela miúda, aquela megera infernal que falava como se fosse a dona da razão e do saber. a voz dela não tremia, não hesitava, e quanto mais ele a deixava falar mais ela o afundava com as suas certezas. às vezes calava-a. ela enchia-se de uma ira silenciosa e fixava os olhos nos dele só por um instante, e depois desaparecia a destilar raiva. e ele afligia-se, porque o desprezo da voz dela ficava a ressoar nos seus ouvidos, como uma doença ou uma maldição. às vezes tentava-se e confrontava-a, provocava-a, com um olhar ou uma palavra ácida ou com a vã esperança de que a mera presença dele a conseguisse desviar por um milímetro. afligia-se porque ela devolvia-lhe uma indiferença diabólica e ele envergonhava-se com tanta arrogância, como é que era possível. e era pior quando se distraía e lhe dava o olhar, porque ela agarrava-o e atormentava-o, certamente a ler-lhe os pensamentos e a esmagar-lhe as pretensões. ridicularizava-o, aquele andar seguro, aquela altivez na expressão que o punha louco de raiva e de terror, toda ela era uma ofensa. 

era como se a qualquer momento ela o fosse encostar a um canto e num minuto lhe roubasse tudo a casa-o carro-os pensamentos-o Amor.