quinta-feira, junho 23, 2005

5.2.02 - 02h31m

dei por mim deitada na cama à procura de qualquer coisa para escrever, lembro-me de quando até guardanapos usava à falta de uma folha de papel. poemas, histórias corriqueiras, revoltas interiores conhecidas só das sebentas e dos cadernos, segredos e obscuridades e tudo o que pairasse no meu pensamento. hoje é-me difícil encontrar uma coisa que seja digna de uma transposição. não sei porquê. talvez seja a tal "falta de inspiração" da qual muitos se queixam e que se provoca desesperos em forma de folhas em branco e canetas imóveis. combatê-la então. de certeza que qualquer coisa há de acordar em mim a divagadora, fazer-me seguir por caminhos tortuosos de perguntas e respostas, problemas e soluções, íntrinsecas meditações que me tomem o espírito e me toldem o raciocínio, diluindo-os na mais pura das emoções. mas o quê? o raio de sol ou aquela sombria e inexplicavelmente sedutora claridade das manhãs chuvosas, em que o céu se baralha em tons de cinzento e branco e me faz sonhar com amanheceres longínquos e gelados? o sorriso infantil, inocente, perdido em purezas que creio raras? ou a voz, a voz especial de alguém importante que me dá calafrios e me remete para tremuras inconvenientes quando é suposto estar o mais natural possível? o livro que leio, a música que oiço, as palavras que me dizem e que balançam na minha cabeça em danças que me remoem os pensamentos? talvez nada disto me interesse verdadeiramente. talvez aquilo de que eu preciso seja apenas uma palavra. por muito pequena. ou um olhar. por muito indiferente. ou um toque. por muito inocente. ou talvez o mais importante seja mesmo o que fica por dizer, que fica por escrever e que não se transmite por nenhum sentido mas pela emoção partilhada com aqueles de quem eu gosto. talvez o mais importante sejam mesmo as folhas em branco e as canetas imóveis.

segunda-feira, junho 20, 2005

de estratégias da expropriação dos problemas

recuso-me a acreditar em soluções fáceis. em estalares de dedos, em escapes alienantes, em santos milagreiros. a beleza polida e forjada da fraqueza de carácter não se equipara nunca à coerência isométrica do pensamento lateral, ao poder da comunicação, à abordagem das perspectivas, à pega de caras.

há nas narrativas de tudo quanto possa ser adjectivado de milagroso um cheiro bafiento a auto-comiseração e credulidade miserável, multidões em delírio histérico. não que não exista benefício na crença em alguma metafísica, mas só se esta servir de impulso, de motor de arranque, de inspiração a uma qualquer resolução concreta. o verdadeiro milagre é a coragem desinteressada, é a paixão. é o olhar para dentro antes de olhar para fora, mapear as inconstâncias e atacá-las estrategicamente, como pragas de parasitas que se destroem com minúcia e determinação. palavras-chave. realizações que pedem muito mais do que simples ambição abstracta, feita de expectativas e sombras de desejos - pedem qualquer coisa mais viva, mais forte. qualquer coisa que não se presta a superficialidades nem a conformismos. disse sun tzu na sua "arte da guerra" que, para termos a garantia de que podemos vencer à vontade cem batalhas, temos de nos conhecer a nós próprios tão bem como ao nosso inimigo. conhecimento - e o discernimento para ver além das evidências.

sexta-feira, junho 17, 2005

esboço (de qualquer coisa muito, muito maior)

quero poder mostrar-te o mundo num carrossel, o amor num bago de uva ou num raio de sol na janela. percebes-me quando falo contigo, percebes os meus abraços, os meus sorrisos, a minha voz zangada, sentes a minha falta... sabes que és parte de mim.

quarta-feira, junho 15, 2005

lost in translation


é na infinitude do abraço que está a chave do que não se quer abrir por si. porque se é mais difícil a intimidade do que a aproximação, porque se é no olhar que se perde que está a resposta à pergunta que não se faz, porque se é no instante do toque que se apercebe a invisibilidade do momento perdido então a tradução está no indízivel. e no irrepetível.

o apelo (post calcutá)*


(sebastião salgado, "gourma-rharous", mali, 1985)

é o sonho de criança, forte e recorrente, que ganha vida de cada vez que eles aparecem, no colorido de um telejornal ou no canto impessoal da estação de metro, de mãos estendidas. os infinitos "eles" que constroem a nossa civilização (des)equilibrada em torres frágeis de cartas imensas em que os trunfos não são de maneira nenhuma suficientes para se fazer um jogo minimamente decente. são tantos, estão em todo o lado, devidamente desenquadrados da cultura do plafond de crédito, das férias anuais seja onde for e das palmadinhas nas costas - a cultura dos olhos bem fechados. a subsistência, meus amigos, torna-se uma questão de pertinência material precisamente porque há desigualdade. em lugares onde a vida humana tem um valor irrisório, onde estamos mais próximos da nossa origem animal, onde qualquer pre-concepção ocidental é desmanchada num instante. não falo por experiência. tenho pena. imagino-me cara a cara com a antítese de tudo o que sempre conheci - e a tentar descobrir as semelhanças, já que as diferenças estão à vista de todos. diz hobbes que os actos verdadeiramente altruístas nunca deixam de ser egoístas, na impossibilidade de negar a natureza egocêntrica do homem. tem razão. não me tira a vontade de poder fazer qualquer coisa, o derradeiro sacrifício, a possibilidade de ser uma abstracção de mim mesma para benefício de perfeitos desconhecidos. pior. desconhecidos com carências. e ver com os meus olhos, para poder acreditar com mais força, que o que mais falta faz ao homem é o espírito. ver nos olhos de um doente, de um refugiado, de um simples desfavorecido, os meus. e perceber que não há em mim nada de extraordinário - como todas as outras, uma pessoa. [se é que ainda alguém sabe o que isso é]

*aventurando-me corajosamente no campo traiçoeiro da "humanidade" - sem pretensões de sacristã ou de filantropa, pretendendo apenas enfatizar um ponto de vista que é universalmente meu e me manter bem ligada à realidade que é a de um mundo que se estende muito para além de bairros e avenidas. gostava de ter força, isso gostava. contento-me com a humildade de quem continua a querer aprender o que é ser humano.

terça-feira, junho 14, 2005

in the sequence of unfortunate events

cada vez mais me convenço da pouca importância do material. não é garantia de nada a não ser estabilidade financeira. constroem-se as aparências, consciente ou inconscientemente - e depois assiste-se confortavelmente ao desmoronar do castelo, até que todos os panos caiam e a verdade, seja ela qual for, possa finalmente ver a luz baça da escuridão.

ensaio

sim, eu sou narcisista
e também egoísta
gosto demasiado de mim para tentar sequer fazer crer o contrário

mas em mim há mil caras, mil cores
serigrafias de muitos amores e para
cada meretriz uma madre teresa
queria ser uma estudante americana
uma matrona siciliana ou uma actriz
de cinema viajando sem parar
dona do mundo bela e sem porquê
no olhar de quem vê esse poder e
esse transmutar de aquiescências
médica do mundo ou bailarina e nos
teus olhos nada mais que uma menina
cientista ou feiticeira é tudo igual
talvez até soldado israelita de pele
brilhante e voz aflita cantora lírica e
traficante de droga porque não
e com as minhas mãos poder tudo e
levar no espírito um infinito entrudo
para explodir com as nações unidas

sim, eu também me canso
e esqueço até
porque vale mais um pássaro na mão do que dois em vôo kamikaze

terça-feira, junho 07, 2005

défices

achava que as pessoas que buscavam atenção constante tinham inseguranças irresolúveis, talvez perturbações em passados mais ou menos distantes que as tivessem deixado de alguma maneira deficitárias. deixou de achar piada quando descobriu que na maioria das vezes eram só reflexos de uma tremenda insipidez.