terça-feira, novembro 30, 2004

presente (sic transit gloria mundis)


Não te quero dar o meu corpo, esse presente envenenado. Sim, hoje podes dizer que é Belo. A sua pele brilha com o reflexo da juventude. A saúde abraça-o e torna-o vigoroso e forte. Do escuro plácido dos seus cabelos podes ver que todo ele vibra, luminoso e macio, esperando o teu toque que o arrepie. Hoje seria um bom presente, fazer-te-ia feliz!

Mas amanhã, quando o tempo por ele passasse, cumprindo a sua ingrata e inevitável missão, de que te serviria esse cobiçado presente?

Eu quero dar-te a minha Alma.

quarta-feira, novembro 24, 2004

o regresso das maíusculas

Abri os olhos. Não via. Por trás de mim (ou seria à esquerda?) passava uma ténue corrente de ar, temperada por uma humidade que me fazia sentir algures num fim de verão perdido. Na minha cabeça reminisceram tardes de Agostos longínquos em que os refrescos de chá com folhas de hortelã controlavam o calor que se instalava em torno da casa, dentro de nós.

Levantei-me e de imediato fui tolhida por tonturas incontroláveis, pioradas susbtancialmente pela falta de visão, e que me pareciam estranhamente artificiais. Foi aí que percebi que provavelmente seriam efeitos secundários da(s) substância(s) que me haviam mergulhado no torpor do qual esforçava por me libertar. Habituado o cérebro à mudança de posição, dei dois passos na direcção contrária à da corrente de ar, levada por qualquer suposição instintiva de que encontraria uma saída ou algo que se assemelhasse. A esta hora já não sabia o que pensar. O meu pensamento tinha sido despido de toda a lógica, sobrando apenas a emoção e o instinto.

Nem sequer sabia que horas seriam, que dia da semana, do mês, do ano. Estava perdida. Não sabia onde, nem porquê, nem com quem. A suspeita de que a corrente de ar poderia não ser uma simples corrente de ar, e sim a respiração de uma pessoa, ou até de um animal maior que um cão, tomava conta de mim. Esfreguei os olhos repetidamente como se com isso conseguisse trazer alguma luz àquela...sala? Armazém? Não conseguia enquadrar o espaço onde estava em nenhuma construção arquitectónica familiar. Olhei...sim, eu via. Não havia era nada para ver.

Azul?

tic, toc, tic, toc...

dúvidas

será legítimo exigir o máximo das pessoas só porque nós próprios todos os dias nos esforçamos mais do que aquilo que somos capazes?

chamar-se-à intransigência ou simplesmente excesso de confiança?

segunda-feira, novembro 22, 2004

desafinada

acomodo-me, recosto-me na chaise-longue da minha imensa lassidão e demoro-me a ver o tempo a passar...a ver os que andam depressa, os que se esquecem de parar, os que se disfarçam em conversas rodopiantes, os que nem sequer passam.

observo e perco-me, afasto-me de onde estou e demoro-me mais uma vez...mas agora é em todo o lado e em sítio nenhum, nos confins do meu pensamento, da minha memória. e fico a revolver tudo o que encontro e sonho, imagino, perco-me tanto...

sombras imaginárias olhares do passado conversas desinteressantes.

e deixa andar e logo se vê e amanhã é outro dia e há-de sempre haver

uma próxima vez.


terça-feira, novembro 16, 2004

sonhos

fui abraçada por alguém que nunca me tocou.

passeámos de mãos dadas por onde nunca antes estivemos. partilhámos emoções em conversas intermináveis que nunca tiveram lugar, sorrimos um para o outro com trejeitos que nunca antes tivemos. e nos seus olhos, no seu sorriso, nas suas expressões inconfundíveis eu vi uma luz que nunca antes tinha visto. e senti-me tão bem por estar ali.

foi só um sonho que mais não significa para mim senão isso mesmo.

foi um sonho.

mas um sonho bom, daqueles que nos acorda com sorrisos e meiguice

domingo, novembro 14, 2004

tanto tempo

tanto tempo a tentar ser igual, a tentar ser diferente, estar de acordo com toda a gente, não querer falar com ninguém...a ver o mar, a ver o sol, a ver a noite e o seu barulho, o seu silêncio...a tentar olhar nos olhos de alguém e conseguir ler os seus pensamentos, porque é que eu não consigo, que raiva surda que me dá...

tanto tempo a compor pensamentos elegantes que agradem ou não, é indiferente porque ninguém lhes presta atenção ou será que prestam e eu não reparo? ou será que me desdenham, me invejam, me admiram, me praguejam e à minha indolência morna de quem vive num outono sem fim.

tanto tempo a gastar palavras doces e azedas, em nuances de vermelho azulado com toques de violeta (ou seria amarelo torrado?), em lânguidos navios de coral que deslizavam e sempre deslizarão nesses rios de papel por onde flutuas de vez em quando em sórdidas melancolias disfarçadas...sim, eu sei bem.

tanto tempo e afinal tão pouco, contado em seculares ampulhetas cor de mel, cheias dos sonhos e das penas de tantas iguais a mim e que nos vidros dos relógios que me vêem de longe se reflectem a sorrir.

é tanto tempo...mas não é tempo perdido, que o tempo não se perde.

engana-se.